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Sinopse

Ney Matogrosso é um artista plural. Das primeiras aparições públicas, passando pelo sucesso estrondoso com o grupo Secos & Molhados, na década de 1970, até os dias de hoje, ele se firma como uma força criativa enorme.

Crítica

Construir um filme unicamente a partir de imagens de arquivo constitui um desafio considerável para qualquer diretor. Ney: À Flor da Pele (2020) não traz qualquer narração, entrevista, letreiro informativo ou imagem captada pelo diretor Felipe Nepomuceno, que trabalha apenas com materiais preexistentes a respeito da carreira de Ney Matogrosso. Como o diretor poderia trazer seu ponto de vista sobre o material, imprimindo um discurso próprio? Como faria deste um filme seu? Projetos deste gênero servem não apenas para ressaltar o papel fundamental da montagem enquanto elemento de narração e criação, mas também para questionar noções conservadoras de autoria no cinema. Primeiro, porque nenhuma dessas entrevistas e gravações de show foi feita “para virar cinema”, ou seja, elas não necessariamente possuíam ambições artísticas enquanto tais (ainda que o cantor, representado pelas mesmas, as tivesse). Segundo, porque a apropriação de conteúdos externos pode sugerir impessoalidade, mesmo uma falsa impressão de facilidade na criação de um filme. O valor da autoria tradicional costuma ser medido pelo controle do criador sobre a obra. Neste caso, no entanto, Nepomuceno entra em cena apenas na pesquisa, seleção de cenas e na pós-produção, enquanto arquivista quixotesco e dedicado.

Ora, de que maneira explicar o papel do vocalista de Secos e Molhados no afrontamento aos costumes durante a ditadura militar? O cineasta parte da associação entre imagens díspares: cenas de opressão policial pelas ruas são sobrepostas ao canto “Ave Maria” de Ney Matogrosso. Na cena seguinte, o cantor manifesta sua dança particular, com o corpo esguio, rebolando, pintado, sobre o palco. Nenhum destes momentos se reduz à exemplaridade: Nepomuceno oferece canções inteiras ao espectador, acreditando na importância da experiência de contemplação. Deste modo, evita-se a simples referencialidade, permitindo ao espectador descobrir por si mesmo nuances do canto, das letras e da apresentação. Em paralelo, permite que entrevistas da época questionem o artista. Melhor do que interrogar Ney atualmente sobre sua evolução, deixa que a reportagens televisivas dos anos 1970, 1980 e posteriores transpareçam a surpresa diante das invenções e reinvenções do personagem. Hoje, uma conversa análoga carregaria o distanciamento natural de quem viveu esses fatos há muito tempo, sabendo exatamente como aquelas imagens terminariam. No entanto, o diretor situa sua obra histórica num eterno presente: o artista é sempre interrogado por seus contemporâneos, imersos no mesmo período e nos mesmos costumes.

Esta escolha produz um efeito precioso no filme. O saudosismo é substituído pela impressão de que o cantor se desenvolve em tempo real, diante dos nossos olhos. Nos documentários tradicionais, uma narração ou entrevista trataria de explicar o impacto causado pelas canções do artista da época, traçando uma linha da juventude à atualidade. Neste documentário, testemunhamos as mudanças no corpo, na voz e no estilo a cada nova entrevista. Ao mesmo tempo, compreendemos as imagens enquanto sintomas: a explicação sobre androginia por um ponto de vista biológico, mesmo exótico, diz muito sobre o período da ditadura, enquanto as explicações sobre “opções” libertárias e identitárias de Ney Matogrosso condizem com um período em que a história de indivíduos LGBTQI+ ainda era contada por heterossexuais, transparecendo condescendência e desconhecimento. Um repórter sugere que a música dos Secos e Molhados pode despertar um “novo comportamento” social, algo curioso quando visto em retrospecto. “Isso deve se tornar comum no ano 2000”, deduz Cid Moreira, sugerindo algum futuro muito distante, transformado em nosso passado. O filme diz muito não apenas sobre a música, mas também sobre a mídia e a sociedade em que ela se insere.

Entretanto, o projeto revela algumas dificuldades. Passagens importantes são ocultadas da narrativa, seja para evitar atritos na vida do cantor ou por não haver materiais de arquivo suficientemente claros por si próprios – caso do término dos Secos e Molhados. Ainda que a montagem se desenvolva de maneira fluida, determinados trechos recorrem a escolhas muito fracas de edição. Estes são o caso da sequência de “Como 2 e 2”, quando flashes de melhores momentos se assemelham a slides de uma apresentação amadora, e à apresentação de Simone para “Imagine”, dos Beatles, incluindo novos flashes com fades, típicos de vídeos ingênuos, repletos de boas intenções. Mesmo assim, estes são momentos atípicos dentro do projeto que consegue, como um todo, refletir sobre o tempo, concebido não apenas enquanto época, mas o tempo da apreciação da música, o tempo da apreensão do estilo de Ney Matogrosso. A textura da imagem – o vídeo desgastado do início, o aprimoramento da captação ao longo das décadas, a aparente câmera de celular durante a apresentação final – transforma-se em elemento fundamental para comprovar que o artista evolui junto da sociedade, em resposta direta a ela.

Por fim, Ney: À Flor da Pele transparece a profunda crença no poder das imagens enquanto veículos de significação por si próprias. O documentário constitui um cinema rústico no sentido de agenciar imagens e sons brutos, sem precisar de inúmeras intervenções de luz, cor, mixagem, dublagem, máscaras, filtros etc. Ironicamente, ele também representa uma forma contemporânea de fazer arte, pela possibilidade de se realizar uma obra competente centrada basicamente em uma única pessoa que reúne, seleciona e agencia os materiais em seu computador. Trata-se de um cinema possível em tempos de isolamento social e, sobretudo, em períodos de desmonte cultural e ataque à classe artística. Assim como Ney Matogrosso representou uma forma de resistência a forças conservadoras, Nepomuceno busca, guardadas as devidas proporções, realizar uma arte igualmente autoral, corajosa e capaz de confrontar as ordens vigentes. Em 2020, o cinema brasileiro não está limitado à gravação de imagens de computadores e câmeras de celular. Há inúmeras formas de resgatar as inovações no passado, ressignificando-as pela colagem (típica da pós-modernidade e do pop) para torná-las, uma vez mais, inovadoras, contemporâneas e pertinentes na luta contra os retrocessos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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