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Sinopse

Entre melanina e planetas longínquos, um mergulho na caminhada de jovens negros da cidade de São Paulo. Um ensaio sobre negritude, viadagem e aspirações espaciais dos filhos da diáspora.

Crítica

Este projeto constitui, no sentido estrito do termo, uma experiência de gênero(s). Um dos aspectos mais interessantes do febril Negrum3 se encontra na maneira como os gêneros, subgêneros e linguagens do cinema (o trash, o caseiro, a performance, a ficção científica, o musical) encontram as múltiplas identidades de gêneros e orientações sexuais. Para retratar indivíduos marginalizados, o diretor Diego Paulino busca formas igualmente marginalizadas dentro do cinema. Enquanto a maior parte dos filmes clássicos (sejam eles longas ou curtas-metragens) busca aparar arestas para atingir certa forma de refinamento, este privilegia justamente as arestas, fazendo das dissonâncias a sua força. Além do discurso de afirmação entoado pelos personagens, as próprias imagens constituem um gesto político de relevância notável.

Estruturalmente, a narrativa se divide em duas partes exatas, muito diferentes em termos de ritmo, ainda que perfeitamente coesas enquanto ponto de vista. Amanda Beça, uma das montadoras mais inventivas do cinema recente, permite que o performer e promoter Eric Olivera comande a primeira parte, expondo seu corpo negro, queer e fora dos padrões enquanto se arruma para uma série de festas. A montagem picota os frames, como se fornecesse tilts, glitches, ruídos. Há algo de um disco riscado, uma interferência magnética prenunciando a ficção científica que virá, e que serve como representação do papel de Eric na sociedade: ele, que usava batom na escola desde pequeno, opera na sociedade heteronormativa e cisgênero como um desses ruídos, que chamam a atenção e que compõem a pluralidade do cenário urbano. “Vou colocar essa peruca loira, coisa de branca maluca, bem cisgênera”, brinca. Chegou a hora de o corpo negro, queer e empoderado parodiar a suposta naturalidade das normas impostas.

A segunda metade expande o escopo da produção: Eric serve como porta de entrada ao mundo de corpos livres, tão firmes em sua postura política quanto flexíveis nos gestos, cores e possibilidades. Paulino representa estes corpos negros não apenas enquanto signo de afronta, mas também como possibilidade de afeto e cooperação. As cenas de encontro de Eric com colegas pelas ruas do centro de São Paulo são surpreendentemente bem filmadas, montadas e editadas em termos de som. O documentário nunca se alterna com a performance, eles coexistem em graus distintos de performatividade e/ou intervenção no meio ao redor – vide as excelentes viagens pelo metrô ou os fragmentos de jovens negros e negras olhando diretamente para a câmera. Estes olhares se traduzem tanto enquanto interpelação (pela responsabilidade histórica branca na marginalidade negra) quanto em sinal de identificação: somos convidados a observar cada um destes rostos anônimos de igual para igual, em forma de equivalência do olhar.

Talvez fosse inevitável que Negrum3 se concluísse num número musical superlativo, mistura de ficção científica kistch com musicais da Era de Ouro, com Aretha Sadick descendo uma escadaria teatral e comandando a cena. Ela evoca líderes negros, estabelecendo uma ponte orgânica entre Martin Luther King, Malcolm X, Marielle Franco e Matheusa Passarelli, todo(a)s negro(a)s, todo(a)s assassinado(a)s por incomodarem as altas esferas do poder. Este é o percurso efetuado pelo curta-metragem: um resgate da ancestralidade aplicada ao pop contemporâneo, uma aplicação da herança política e militante negra na juventude brasileira atual, além de uma travessia do próprio cinema, entre o classicismo e o radical, ousado, fragmentado, colado, justaposto, ressignificado. Em conjunção com a sociologia contemporânea, o projeto percebe que o principal campo de batalha político e simbólico dos nossos tempos se encontra no corpo. Não é mais possível fazer cinema de vanguarda sem reinventar nossa percepção dos corpos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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