Crítica


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Sinopse

Jovem de formação culta, Lenita desconsidera a existência de um homem à sua altura intelectual.  

Crítica

Percebe-se nesta adaptação do romance “A Carne”, de Júlio Ribeiro, um respeito imenso não apenas pelo texto em particular, mas por toda a literatura, pelos retratos de séculos anteriores, pela importância da emancipação feminina, pela trilogia iniciada por Ricardo Miranda. Natureza Morta é um filme solene, que parece carregar uma grande responsabilidade nas costas. Sua narrativa transparece o encantamento com as palavras, os gestos, o ritmo particular. Cada imagem soa inebriada pela “languidez suavíssima”, como afirma a própria narração. Por isso, os personagens falam calmamente, saboreando cada palavra, articulando bem as sílabas, em tom sedutor, sussurrado. Estamos falando de erotismo, afinal, e a maneira encontrada pela diretora Clarissa Ramalho para retratá-lo em pleno fim do século XIX foi a obsessão por um sexo que jamais se concretiza. Entre o decoro e o tesão, vence o decoro.

No início, alguns gestos de estranhamento soam promissores enquanto provocação ao espectador. Helena Ignez, portando uma máscara, narra a introdução fabular diante de uma fazenda abastada. A luz é construída em tamanho grau de artificialidade que a atriz parece declamar seu diálogo diante de uma projeção em chroma key. Alguns gestos antinaturalistas (o salto de Lenita no colo de seus cuidadores, a massagem menstrual) nos distanciam da autoimportância do texto, mas não por muito tempo: o filme jamais assume o aspecto de performance dos saltos isolados, nem o teor kitsch da paisagem desfocada, muito menos a voracidade no retrato do corpo feminino. Estas passagens, ainda que belas, não se desenvolvem nem contaminam o restante da narrativa. O filme segue uma rígida estrutura determinada pelo ritmo das palavras narradas, ao invés do encadeamento imagético.

Quanto às palavras, Natureza Morta propõe narradores múltiplos, sejam eles intradiegéticos ou extradiegéticos. A história é contada – ou explicada, na verdade – por Lenita, pela funcionária da casa, por um narrador em off, pela personagem etérea de Helena Ignez. Meia dúzia de vozes se sucedem na tarefa de compor um amor repentino, aparentemente profundo e pleno de desejo, ainda que sem sexo, sem beijo, sem enlaces. Ramalho prefere trabalhar a sentimentalidade na chave do conceito teórico: fala-se de amor, mas não se mostra o amor. O interessante discurso inicial sobre a obrigação das mulheres a se casarem aponta para uma crítica ao machismo herdado de séculos atrás, ainda que a narrativa de emancipação não se torne um conflito central. Talvez a impressão de frieza diante deste filme decorra de seu ponto de vista neutro: observamos a história por um ponto de vista onisciente, porém não intervencionista. Não enxergamos o mundo (ou o amor) pelos olhos de alguém em particular.

Em paralelo, evita-se o mergulho na psicologia destas mulheres e homens amorosos. Lenita e os demais moradores da casa são presos a gestos e palavras, que encapsulam até a dor da saudade ou da ruptura: tem-se a palavra da tristeza, ao invés da imagem da mesma. Enquanto isso, o sexo é representado pelas simbologias mais óbvias – vide uma maçaneta em formato de pênis, pés esmagando uvas, mãos esmagando caquis, uma multiplicidade de bananas descascadas e mamões cortados ao meio, além de quadros de naturezas mortas, é claro. O teor estático das cenas é reforçado pelo dispositivo teatral: a direção utiliza a janela em scope para abrir o espaço o máximo possível, observando à distância enquanto os personagens se movem sobre o chão de madeira do casarão, análogo ao tablado cênico. Deslocam-se dentro dos planos fixos como para preencher o espaço vazio deste cenário.

É certo que o projeto conta com atores excepcionais: é sempre um prazer testemunhar a naturalidade de Rômulo Braga para diálogos espinhosos, além da presença muito confortável de Paulo H. Azevedo (bela cena sobre a histeria, aliás) e da entrega sem pudores de Mariana Fausto. O filme encerra uma trilogia literária, e talvez possa ser melhor compreendido enquanto conclusão de uma forma de cinema que ergue a pompa das casas senhoriais ao limite da pose e dos gestos retóricos. No entanto, por mais que traga alguns elementos de estranhamento dispersos pelo conjunto, ainda soa como uma linguagem antiquada, incapaz de privar a monotonia da vida burguesa de contaminar o próprio filme. O ritmo e o texto são bastante exigentes, como se constituíssem gestos de reverência ao invés de uma apropriação e adequação ao cinema do século XXI.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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