Crítica


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Sinopse

Nasir divide-se entre o extenuante trabalho como vendedor de tecidos e os cuidados com a sua família. Ele não deixa de sonhar com um futuro melhor, isso enquanto escreve cartas de amor à esposa e declama suas poesias.

Crítica

Por um lado, o diretor Arun Karthick sugere a possibilidade de um filme sem conflito algum, do tipo cujo prazer se encontra no recorte de dias que poderiam ser iguais a quaisquer outros. Nasir (Koumarane Valavane), um vendedor de tecidos, efetua os mesmos gestos de manhã até a noite, entre o trabalho e o lar. A câmera o acompanha em silêncio ao longo de cada uma das inúmeras vielas que percorre pela cidade. Possíveis atividades são ocultadas do espectador: “Você não esqueceu, né?”, pergunta a esposa, ao que o protagonista responde: “Não, não esqueci”. Não sabemos de que compromisso falam, mas pouco importa. Trata-se dos pequenos arranjos entre casais cuja experiência permite a compreensão mútua a partir de poucas palavras. A cena inicial admira longamente o protagonista dormindo sobre o chão, enquanto as ruas e as casas ao redor permanecem em silêncio. Contempla-se um cenário calmo, mas também melancólico, porque desprovido de possibilidades de transformação. Sabemos que Nasir desempenhará a mesma tarefa para sempre. Do mesmo modo, pressentimos que ele seguirá uma vida de poucos confortos, ainda que não sofra com a miséria. Em outras palavras, temos um cenário de inércia social.

Por outro lado, alguns aspectos desta calmaria sugerem possíveis revoluções no horizonte. A esposa de Nasir parte em viagem, sem calcular uma data de volta. Algo na solidão do vendedor sugere o medo de que ela não retorne, ainda que não haja motivos concretos para tal desconfiança. A mãe idosa sofre com uma doença crônica há anos, mas ela não poderá aguentar a dor para sempre, certo? O filho adotivo com deficiência mental precisa ficar sozinho em casa às vezes. Os sons vindos das mesquitas e das rádios alertam para possíveis conflitos entre hindus e muçulmanos. Curiosamente, nenhuma dessas promessas de crise constitui uma novidade para o homem taciturno. Entretanto, elas acenam à possibilidade de algum destes pilares ruir eventualmente. O roteiro jamais desperta a sensação de se encaminhar para algum final específico. Muito pelo contrário, ele evita qualquer noção de finalidade, oferecendo um fragmento de dias comuns com pessoas comuns, do tipo que raramente ganha as telas do cinema comercial. A tensão se encontra nas brechas: o diretor sustentaria a contemplação cotidiana até o final, ou aproveitaria um destes possíveis conflitos (ou outro inédito, por exemplo) para transformar a narrativa?

Sem a necessidade de apresentar ambições, desejos ou objetivos de seus personagens, o projeto se dedica a uma observação naturalista próxima do registro documental. Karthick demonstra verdadeiro prazer em compor planos e trabalhar com a duração dos mesmos. A janela próxima do quadrado (1.33 : 1) com as bordas arredondadas remete às filmagens em película 16mm, no entanto, a imagem perfeitamente nítida comprova a captação digital. Algumas passagens sugerem uma Índia atemporal, enquanto outras a situam em plena época das redes sociais (as estudantes flertando com garotos “no Insta”). O cineasta utiliza um formato muito mais apropriado aos retratos, apenas para explorar os espaços (as vielas, a geografia da loja de tecidos, os cômodos da casa) ou então os detalhes de corpos e objetos. Karthick articular entre centros comercias e locais abertos com planos muito próximos das mãos e dos pés, ou ainda o instante exato em que uma mosca pousa sobre o corpo do filho. Mesmo os recursos estilísticos sugerem uma fricção entre opostos: temos a câmera próxima demais, como se flagrasse algo, ou distante demais, como se espiasse Nasir e a esposa. A estética nos prepara à possibilidade de algum acontecimento notável.

Ao mesmo tempo, a imagem nem sempre coincide com o som. As frases incitando a intolerância religiosa provêm de um interlocutor ausente, funcionando como uma espécie de imaginário coletivo. Enquanto escutamos as provocações, presenciamos o vendedor se deslocando a pé ou de moto, alheio aos avisos (Ele estaria realmente ouvindo os alertas? Ou talvez já esteja acostumado? Ou seja, as frases violentas são intradiegéticas ou extradiegéticas?). Quando começa a recitar seu poema de amor à esposa para os colegas de trabalho, a imagem se atém ao rosto dos ouvintes antes de flagrar o poeta amador. Há algo muito singelo na descoberta dos talentos deste homem a menos de 30 minutos da conclusão. Quanto menos roteirizadas são as cenas, melhor o resultado: a sequência da venda dos casacos parece acessória dentro daquele cenário (vide a fraca reação dos jovens em seus dormitórios estudantis), ao passo que a admiração pelas xícaras de café, por baldes se enchendo ou rostos através de cortinas provoca um efeito mais interessante. O filme se intensifica quando abraça a poesia do dia a dia, enquanto se perde na necessidade de fazer a trama avançar.

Karthick propõe uma conclusão amarga, em ruptura com o tom plácido até então. A cena final se assemelha à estrutura literária dos contos, nos quais toda a construção interna de um personagem serve a nos preparar para um choque ainda maior diante do caos deliberadamente não resolvido. É possível imaginar a ação final como a última linha de um conto, seguido por uma longa página em branco. Esta forma de comunicação joga ao espectador a responsabilidade de interpretar o grave acontecimento, imaginando o que aconteceria depois. A conclusão busca um espectador ativo, retirando-o do belo torpor construído até então. A estética da violência (com a câmera tremendo incessantemente, ao limite da abstração) pode não constituir o modo mais sofisticado de sugerir aqueles atos. No entanto, a duração estendida do plano final e a maneira como os elementos estão dispostos na imagem dizem muito sobre o talento do diretor para a observação humanista. O gesto final se torna parte da banalidade daquelas vidas, sugerindo a possibilidade de acontecer a qualquer indiano. Talvez tenhamos sido enganados: a narrativa inteira conduzia a estes últimos cinco minutos, a esta reviravolta improvável. Ora, temos uma experiência muito diferente diante da violência praticada contra um anônimo, ou infligida a um homem junto do qual passamos os últimos 75 minutos. Nasir propõe uma discussão sobre a banalidade por trás da violência, ou ainda a subjetividade do indivíduo em meio às crises coletivas.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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