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Sinopse

Afeganistão, Iraque e Síria. Imagens geradas a partir de helicópteros. Quem filma é também quem mata.

Crítica

Podemos confiar nos nossos olhos? Que garantia temos de que aquilo que enxergamos corresponde à realidade? A falsa impressão de objetividade diante do real constitui um dos temas centrais do fascinante Não Haverá Mais Noite (2020), estudo a respeito da imagem enquanto filtro do mundo. A diretora Eléonore Weber poderia sugerir casos de alucinação, delírio, visões parciais ou distorcidas dos fatos. No entanto, ela prefere algo mais sutil, e ao mesmo tempo mais complexo, voltando o foco à nossa visão, literalmente, a respeito das guerras. Não há uma única imagem criada especialmente para este projeto, que se apropria das gravações registradas por pilotos e atiradores de helicópteros europeus e norte-americanos nas invasões do Iraque, Síria e Afeganistão. Todas as imagens do documentário são subjetivas, em vários sentidos do termo: observamos aquilo que os militares veem, do alto, a partir de uma câmera acoplada aos uniformes. Conforme eles viram o rosto para a direita ou para baixo, o enquadramento se vira para a direita e para baixo. Os oficiais, jamais vistos na imagem, constituem ao mesmo tempo os diretores da cena e seus atores desavisados – afinal, as gravações são produzidas apesar deles, sem que eles possam determinar o ângulo ou o alvo das captações. Eles controlam tudo e nada ao mesmo tempo.

Este olhar onisciente e também automatizado provoca fricções interessantíssimas. Em chave bastante cerebral, a cineasta oferece uma espécie de filme-ensaio. Ela discute aspectos essenciais da interpretação das imagens, que valem tanto para as guerras quanto para a arte: 1. A noção de que nossa visão de mundo é necessariamente impregnada de posicionamento social, hierárquico e ideológico. Ao observarmos os pequenos contornos humanos, em preto e branco, sobre um terreno iraquiano qualquer, não distinguimos com facilidade as partes do corpo, nem as roupas. No entanto, os soldados têm a certeza de verem armas por todos os lados, porque é isso que desejam ver. Projetamos nossas pulsões no mundo, e o interpretamos segundo o que gostaríamos que fosse. 2. O nosso olhar é capaz de literalmente alterar o objeto observado. Isso equivale tanto para uma leitura filosófica das coisas (a questão do tempo e da permanência) quanto para a leitura política: o fato de interpretarmos iraquianos como terroristas altera a realidade no sentido de legitimar massacres. 3. O olhar implica numa relação de poder: observar sem ser observado, observar mais ou melhor do que o outro (por ter binóculos, e estar mais bem posicionado) constitui uma forma de dominação. Não existe democracia do olhar.

A cada nova reflexão, Weber entrelaça discussões válidas para a imagem criada e para a imagem apreendida do mundo. O projeto se sustenta sobre uma narração eloquente e fluida, não-coincidente com o conteúdo das imagens, e acrescentada a posteriori. O cinema de guerra costuma apostar na urgência, na imersão ao vivo e em tempo real. Ora, imagem e som chocam-se sem parar em Não Haverá Mais Noite: por um lado, as gravações dos militares se colam ao real, ao passo que as ponderações imprimem distanciamento. A voz de Nathalie Richard não comenta o que vemos, privilegiando o debate sobre estas e outras imagens de guerra em geral. Aqueles trechos perdem a sua especificidade, tornando-se exemplos, ou ainda estudos de caso. Não há real distinção entre os cenários no Iraque, Afeganistão ou Síria: trata-se de cenas de combate, despidas de suas especificidades sociopolíticas. A política esmiuçada, no caso, seria aquela das imagens. Os militares se queixam de verem tudo (por estarem com a câmera ligada a qualquer momento), mas não verem nada (por não enxergarem de perto, nem em detalhes); e de compreenderem menos à medida que olham algo por mais tempo. Estes homens com armas potentes têm ao mesmo tempo profunda certeza e constante insegurança de seus atos. Eles são fortes e frágeis, impulsivos e medrosos.

O documentário guarda uma semelhança espantosa com Sem Sol (1983), obra-prima de Chris Marker, igualmente dedicada ao olhar. A narração de Nathalie Richard reproduz à exatidão o trabalho de Florence Delay em termos de impostação, ritmo e mesmo timbre de voz. Marker também trabalhava com registros ressignificados de um homem ausente das imagens (Sandor Krasna no filme dos anos 1980, Pierre V. no filme de 2020), questionando a equivalência do olhar, a banalização do espetáculo, a possibilidade que o fato de observar algo, e registrá-lo, possa constituir um ato de violência. Os nomes de ambos os filmes guardam uma afinidade notável: sem sol para um, sem noite para o outro. Talvez Weber não atinja os delírios poéticos de Marker, no entanto a estrutura narrativa e a concepção do cinema enquanto ferramenta acadêmico-experimental atesta um parentesco notável. Antes, o olhar europeu era levado ao Japão e à Guiné-Bissau. Agora, o ponto de vista europeu e norte-americano se aplica ao Oriente Médio. Mudamos o foco de exotismo, enquanto a colonização de Sem Sol cede espaço a outra forma de apropriação (a guerra) em Não Haverá Mais Noite. As obras conversam entre si, continuando a iniciativa ambiciosa de não discutir os fatos, mas a nossa própria capacidade de interpretá-los.

Não se vê um único rosto humano neste filme – nem aquele dos atiradores, nem o das vítimas. Este seria possivelmente o elemento mais perturbador do retrato sobre a banalização da guerra. Os algozes constituem vozes sem corpo, já os iraquianos, sírios e afegãos se tornam minúsculas figuras à distância, indistintas. Seria mais fácil matar alguém que não vejo, conclui a narradora, e também justificar o ato em caso de erro – ora, como eu poderia ter certeza a tal distância? A guerra se revela ao mesmo tempo muito precisa e muito vaga em seus alvos, sendo movida mais pela vontade de enxergar no outro um adversário do que por argumentos de defesa ou proteção. Enquanto críticos da imagem, os membros das forças armadas se mostram incrivelmente tendenciosos. Mas não seríamos todos? Se um rapaz anda com rapidez num campo agrícola, ele é interpretado como suspeito, por estar fugindo. Se anda devagar, é considerado suspeito por estar disfarçando. “Ele não deveria estar num campo a essa hora”, declara o atirador francês, em off. O alvo será suspeito, faça o que fizer, porque eu o desejo assim. Em tempos de pessoas negras sendo atiradas pelas costas, sufocadas por policiais brancos, ou cravejadas de balas nas favelas brasileiras, este raciocínio encontra ressonâncias perturbadoras. “Você não consegue enxergar as coisas como eu”, Pierre V. teria dito à narradora, numa fala bastante acertada.

De fato, o filme se apropria do material alheio e oferece apenas o ponto de vista dos militares, porém se dissocia dele radicalmente via montagem, narração e manipulações sonoras (suspendendo o anúncio de tiros antes de acontecerem, por exemplo). Teria sido fácil denunciar os abusos de poder e a atrocidade destas invasões, mas o filme as considera uma evidência, partindo então para o próximo passo, o questionamento. O que leva os soldados a atirarem a esmo? O que pensam, o que veem? Que efeitos o cansaço, a permanência no escuro, o medo de tiros alheios e a ânsia pelo heroísmo produzem sobre seus atos? Desenha-se um painel tanto sociológico quanto psicológico da experiência da guerra in loco. A potente conclusão, na qual a câmera-sniper é aplicada a um subúrbio norte-americano, revela, por si só, o gesto de deslocamento crítico do filme inteiro: acostuma-nos a enxergar afegãos e sírios enquanto alvos, projetando certa normalidade nas ruínas e na precariedade alheia. No entanto, uma vez que a família tradicional burguesa se encontra na mira dos mísseis, o gesto soa agressivo e gratuito. Ora, por que não o seria do outro lado do mundo? Nossa parcialidade, nosso olhar viciado e colonizador é representado sem uma fala sequer, por um gesto silencioso de montagem e enquadramento, como apenas os melhores filmes conseguem fazer.

Filme visto online no 4º Festival Ecrã de Experimentações Audiovisuais, em agosto de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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