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Sinopse

Apanhadas num escândalo financeiro, as belas irmãs Giwa são forçadas a sair da sua bolha de privilégios e construir seus próprios futuros, com isso buscando resgatar o legado da família.

Crítica

A pobreza é uma bênção. Neste conto de fadas contemporâneo, as milionárias Lara Giwa (Seyi Shay) e a irmã Dara Giwa (Somkele Iyamah-Idhalama) perdem todo o dinheiro do dia para a noite, devido a um esquema de corrupção praticado na empresa familiar. Elas não acionam advogados, não vendem bens, apenas lamentam a própria sorte, ao serem despejadas na rua de uma hora para a outra. Aos poucos, as meninas ricas descobrem que essa era a melhor coisa que poderia acontecer em suas vidas: a arrogante e superficial Lara, para quem bolsas de marca constituem o item mais valioso do mundo, descobre que a rotina num casebre apertado pode ser muito reconfortante. Dara, que não acreditava em seu talento de cineasta, toma a coragem de editar um filme mudo em preto e branco e projetá-lo ao ar livre. Ambas se convertem em pessoas mais maduras, felizes e sociáveis. Histórias com esse tipo de moral sempre foram defendidas em função do discurso supostamente otimista (“dinheiro não traz felicidade”, “o que importa é a união familiar”). No entanto, transpiram conformismo ao sugerirem que os pobres deveriam estar muito satisfeitos com a situação em que se encontram, afinal, o dinheiro só traria cobiça e dor de cabeça.

A questão ética constitui um dos inúmeros problemas de Na Batida de Lara (2018), romance com ares de videoclipe, com pelo menos 40 músicas diferentes na trilha sonora. O diretor Tosin Coker demonstra dificuldade surpreendente em introduzir reviravoltas básicas, mesmo dentro de uma história convencional. É difícil determinar se os problemas nascem no roteiro, ou na montagem desengonçada, sofrendo para concatenar sentido ao longo de 140 minutos. De qualquer modo, ambas as irmãs são consideradas personagens principais até a metade da trajetória, quando Dara é esquecida pela direção, que elege Lara sua protagonista (vide o título). A invasão de policiais durante uma reunião empresarial ocorre como um truque mágico da montagem: os investigadores surgem abruptamente, num contraplano. Lara grava uma espécie de clipe sem o filme avisar o espectador destes planos, razão pela qual toda a estrutura aparece inexplicavelmente. Dara, cineasta intelectual, ignora a necessidade de edição de seu próprio longa-metragem. Quando a encorajam a “enfim” concluir o projeto (“Enfim”? Nós sequer sabíamos que ela o estava preparando!), a jovem percebe que faltaria apenas montar. Construções simples como a curiosa profissão do produtor-motorista, ou a amizade com Tonye (Kemi Lala Akindoju) surgem de maneira inverossímil, num passe de mágica.

A direção de fotografia constitui um caso à parte: o trabalho de Harold Escotet constitui uma pérola de exotismo fotográfico. Munido de um leve estabilizador de imagem, ele decide retratar 90% das cenas em enquadramento fluido e móvel, aproximando-se e afastando-se das atrizes, ou contornando colunas, girando em torno de mesas e passeando pelos móveis da casa quando a protagonista se desloca. Nada justifica tamanho malabarismo, que sugere indecisão quanto às escolhas do diretor para cada cena. Neste caso, não se compreende o quadro enquanto seleção do olhar, e sim dispersão do mesmo. Escotet move sua câmera aleatoriamente, flutuando como lhe convém, chamando atenção para a brincadeira a ponto de eclipsar a narrativa em si. Assim, os planos-sequência não se explicam pela necessidade de fornecer um tempo prolongado, contemplativo, nem de acompanhar a fluidez dos movimentos – vide a edição fragmentada, avessa à ideia de continuidade. Este recurso apenas reproduz a estética do imperativo da mudança, típico do vídeo musical. Na Batida de Lara constitui um filme pós-moderno no sentido de confundir dinamismo com déficit de atenção: ele supõe dialogar com um público jovem que exigiria imagens se mexendo a cada cinco segundos, caso contrário, ficaria entediado. Por isso, mesmo quando as irmãs conversam sentadas numa cama, a câmera gira freneticamente para todos os lados, como o ponto de vista de um cãozinho hiperativo.

Por volta da segunda metade, o filme pelo menos narra seus conflitos de maneira mais clara. Neste momento, Coker abraça sem moderação os códigos do melodrama televisivo: existem vilões perversos, tanto masculinos quanto femininos, além de amigos traidores, amantes com um segredo no passado, beijos tórridos sob a chuva, personagens paupérrimas que trocam de peruca e figurino três vezes por dia. Além disso, há frases de efeito: “Nem sei quem eu sou. Nem sei se algum dia eu soube quem eu sou”, ou “Eu estou cansada desta ilusão da realidade!”. Pobre Lara. Ela despreza a todos, e mesmo assim, cada coadjuvante se demonstra apaixonado por ela, ajudando-a cena após cena. Após xingar a empregada doméstica, esta acolhe a herdeira em casa. Após insultar a amiga Tonye, passa a dormir na cama desta, que se muda para o sofá. Depois de desprezar Sal (Vector the Viper), Lara descobre a paixão do rapaz por ela. Quando a cantora confessa que o único interesse real no jovem produtor se encontra nas oportunidades profissionais que este pode lhe proporcionar, Sal se apaixona ainda mais. Os coadjuvantes sofrem de sério problema de autoestima, sujeitando-se aos caprichos da princesa mimada. Nenhum deles possui conflito próprio, independente da cantora: eles vivem para ajudá-la, para lhe dar a réplica, para emprestar dinheiro, para dar comida, cama e carinho.

Afinal, este seria o funcionamento tradicional dos contos de fada: os personagens coadjuvantes remetem aos ratinhos costurando o vestido da Cinderela, ou ao bule e ao candelabro orquestrando a felicidade de Bela. O mundo existe para Lara, fornecendo-lhe inúmeras oportunidades de se descobrir feliz e mais humana pelo contato com “gente simples” (entenda-se: pobre e de bom coração). Uma das sequências finais, quando a cantora precisa “consertar”, segundo os diálogos, o filme intelectual da irmã, indicam que nem Dara pode ter alguma forma de vida livre da presença asfixiante da diva. Este trecho serve de metáfora para o projeto como um todo, “embelezado” pela montagem picotada, pelos inúmeros planos aéreos, pela trilha sonora ininterrupta, pelos amores convenientes. Nos raros momentos em que a narrativa se acalma, percebem-se os problemas marcantes de captação sonora, de lógica narrativa, e mesmo de atuação – o som cortado em duas cenas desperta a impressão de remendo em pós-produção, ao invés de escolha estética. Trata-se de uma produção maquiada, tão artificial e vaidosa quanto Lara. No entanto, ao contrário da heroína, Coker não descobre o valor do minimalismo no final, continuando a se apoiar num sem-número de efeitos e filtros pop.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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