Crítica


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Sinopse

Revelações sobre a vigilância e a intimidação do FBI ao reverendo Martin Luther King. Em virtude do Ato de Liberdade de Informação, documentos vêm à tona para mostrar a perseguição a ativistas negros.

Crítica

MLK/FBI (2020) se constrói a partir de um furo de reportagem: graças ao Ato de Liberdade, foram liberados os documentos secretos do FBI comprovando a estratégia de perseguição contra Martin Luther King. Para o conservador estado norte-americano, a popularidade de um líder dos direitos civis, convocando manifestações e protestos, constituía uma ameaça à segurança nacional. A pressão governamental contra o reverendo já era conhecida na cultura popular, após retrato em jornais e programas de televisão da época. No entanto, o trunfo do documentarista Sam Pollard se encontra na obtenção destes memorandos e relatórios, confirmando a ordem de vigiar o vencedor do Prêmio Nobel da Paz e criar a imagem de comunista, arruaceiro e poligâmico, para destrui-lo aos olhos da população. No país do escândalo moralista envolvendo Bill Clinton, a principal arma política se encontra na moral: a desconstrução da imagem de Martin Luther King precisaria passar pelo retrato de um homem de apetite sexual voraz. Nada assusta mais o tradicionalismo cristão do que a noção do prazer erótico não regulado pelos impedimentos da Bíblia.

O documentário privilegia o viés jornalístico e informativo. Da primeira à última cena, a narrativa é conduzida por entrevistas de especialistas, seja de amigos próximos do falecido ou biógrafos do protagonista. Uma dezena de vozes se intercalam na banda sonora, em off, enquanto as imagens costuram fotografias, trechos de protestos e falas potentes de Martin Luther King. A produção transparece profissionalismo e esmero técnico, através da montagem fluida, da intromissão discreta, porém frequente, de trilha sonora, e do cruzamento orgânico de depoimentos. Este é o tipo de projeto comercial que os festivais norte-americanos se acostumaram a considerar índices de qualidade: trata-se de obras dotadas de considerável orçamento, influência e poder de acesso às principais pessoas envolvidas no caso. Ao mesmo tempo, o formato se torna padronizado, avesso a qualquer forma de invenção formal ou estética. O cineasta se prende à sucessão linear e descritiva dos fatos, em ordem cronológica, formando uma narrativa verbal no pretérito (perfeito ou imperfeito). Este é um filme de verbos: ele fez, e depois foi, e depois falou, e depois viajou. Constrói-se um relatório imagético sobre um relatório do FBI – um protocolo do protocolo.

No que diz respeito à exploração cinematográfica dos papéis produzidos pelo FBI, Pollard efetua um uso discreto. O espectador tem acesso a pequenas palavras pinçadas de cada relatório, nunca mais do que duas linhas de texto. Para um projeto tão interessado em revelar a integridade dos documentos, esta seletividade sustenta a impressão de transparência limitada. Após 105 minutos de exibição, os escritos se mantêm secretos ao espectador. Embora evite a análise aprofundada do material, o filme dedica tempo considerável à descrição psicológica de Martin Luther King. Por um lado, é compreensível que se investigue este homem por sua jornada moral face a tantas pressões políticas. Por outro lado, o roteiro exagera na pressuposição de estados de espírito. Os entrevistados, em voz off, descrevem o que o protagonista estaria pensando em cada noite, estimando o nível de suas preocupações, e o fato de que “ele tinha uma rotina tão intensa que não conseguia ficar pensando nestes problemas o tempo todo”. Ora, como se sabe disso? O próprio King publicou algo a respeito? Temos informações de fontes muito próximas? O discurso passa a misturar dados, deduções e meras especulações. Em certa medida, o cineasta promove uma invasão de intimidade análoga àquela promovida pelo FBI.

Em contrapartida, o discurso se revela mais prudente ao lidar com a política propriamente dita. Após listar inúmeros indícios do racismo estrutural do FBI e especialmente de J. Edgar Hoover, evita considerar, ou sequer mencionar, o termo “racismo” a respeito do político e do presidente. Hoover é descrito da seguinte forma: “Para uns, ele foi um grande americano. [...] Para outros, um homem que perseguia aqueles de quem não gostava”. A pretensa imparcialidade prejudica o documentário que assume a defesa de Martin Luther King contra o intervencionismo e a paranoia do FBI. Pollard se esforça em preservar a instituição, apesar deste episódio, “o mais vergonhoso da história do bureau. O roteiro enxerga um deslize já superado, evitando relacionar o caso de King com aquele de outros ativistas negros contemporâneos. Em outras palavras, o filme está disposto a enxergar um evidente erro no passado, contanto que ele seja enquadrado na categoria de episódio excepcional dentro de uma nação onde as vozes são igualmente escutadas. Como reavaliar a prática policial de algumas décadas atrás sem pensar no impacto na política atual? Sem relacionar MLK com Malcolm X, e hoje com George Floyd e Breonna Taylor?

Por fim, MLK/FBI impressiona pelo acesso à informação e aos maiores pesquisadores do ativista, porém não vai muito longe na reflexão a partir dos fatos. O diretor coloca a si mesmo na posição de jornalista preocupado com a exposição fatual, e com notável medo de incomodar a presidência e o FBI. A conclusão, espécie de apêndice narrativo após o plano da lápide, coloca panos quentes no caldeirão ideológico. As falas se revelam indecisas, poupando o status quo e situando a igualdade de oportunidades dos Estados Unidos em primeiro lugar. Os biógrafos enfim aparecem em cena, revelando que Hoover precisa ser descolado da imagem do vilão, e que devemos evitar maniqueísmos. A hesitação se estende ao uso do material: os especialistas relembram que as gravações de escutas e grampos telefônicos serão divulgadas ao público em 2027, mas ninguém espera retirar qualquer novidade destas fontes. Em outras palavras, a existência de provas ocultadas pretende carregar valor em si, para além do conteúdo. O documentário relembra uma passagem fundamental na história dos Estados Unidos, acreditando que as únicas vítimas tenham sido Martin Luther King e sua esposa.

Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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