Crítica


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Sinopse

Duas mulheres colombianas, e uma mexicana, imigram para o Canadá. Elas fogem de um cenário de violência, da perseguição das milícias e de familiares agressivos. Elas revelam suas experiências de adaptação, transitando entre duas vozes: o inglês e o espanhol.

Crítica

É interessante perceber o quanto a imagem cinematográfica, ou fotográfica em geral, é dedicada ao rosto humano. Nossas categorias de enquadramentos se condicionam à posição e importância das faces: os termos close-up, plano americano, plano de conjunto e assim por diante são organizados de acordo com a atenção conferida ao material humano — mais próximo ou distante; com detalhes das expressões ou imperceptível diante da paisagem. Não seria absurdo dizer que toda a construção cinematográfica se aproxima do retrato, seja ela considerada explicitamente como tal ou não. Quando espaços e objetos assumem o protagonismo ao invés de pessoas, o resultado costuma ser considerado hermético, experimental — caso de Berlim: Sinfonia da Metrópole (1927) —, pois nossos olhos se orientam em busca de um rosto humano para seguir. É preciso que nos retirem o referencial humano das imagens para percebemos a falta brutal que ele faz. Neste contexto, Mis Dos Voces (2022) representa uma experiência desafiadora, pois as três protagonistas, Ana Garay Kostic, Marinela Piedrahita e Claudia Montoya, são vistas apenas nos minutos finais de projeção. Antes disso, guiamo-nos por suas vozes.

A cineasta Lina Rodriguez aproxima este trio pelo histórico da imigração: trata-se de três mulheres de origem colombiana ou mexicana, tendo buscado melhor condição de vida no Canadá. Elas carregam históricos de abuso doméstico, maus-tratos por parte dos pais quando crianças, empregos precários. No entanto, o aspecto de choque ou pesar jamais contamina a narrativa: o documentário se desenvolve num ritmo leve, agradável. Esse tom se deve em primeiro lugar à habilidade da cineasta em deixar suas personagens confortáveis para conversarem sobre qualquer assunto desejado, desde os episódios banais da chegada à América do Norte até as feridas físicas e psicológicas deixadas por um marido violento. Ana, Marinela e Claudia possuem distanciamento em relação aos fatos, sem lutarem por justiça, vingança ou qualquer forma de reparação simbólica. Elas aparentam ter virado a página de suas vidas anteriores, evocadas na forma de um passado nostálgico. Paira a impressão de que as heroínas receberam da direção a liberdade para discutir qualquer tema desejado, e portanto não se ativeram às passagens óbvias de suas trajetórias, destacando com igual atenção os sentimentos, sensações, dúvidas e instantes divertidos do processo de adaptação.

Enquanto isso, na ausência de rostos, o que as imagens têm a oferecer? O espectador presencia um gramado, algumas flores, a fachada de uma casa, os detalhes de uma toalha de mesa. Os dedos mexendo nos cabelos, em plano de detalhe, podem ou não corresponder àqueles das protagonistas, assim como as mãos que seguram o volante durante longos minutos. O longa-metragem se articula em torno da dissociação completa entre som e imagem, cada um deles narrando uma história diferente. O significado não se encontra em um ou outro, e sim na junção improvável entre estes materiais nunca concebidos para conviver juntos. A montagem constitui o principal vetor de sentido: mais do que compreender as dificuldades de enfrentar uma nova língua, somos levados a indagar este sentimento sobreposto à imagem de flores; ou um episódio de socos e vidros quebrados em associação aos dedos no volante. A estrutura poderia se organizar em outra ordem, sem grande prejuízo ao resultado. Teria sido evidente criar metáforas de violência para os episódios agressivos, ou representações de ternura para as evocações de amor e reencontro com familiares. Em contrapartida, a diretora prefere que a ligação seja dispersa, quase abstrata.

Tamanha fluidez das falas desencarnadas, ou seja, desprovidas da referência direta com as expressões faciais, provoca a sensação de um projeto voltado à digressão, à livre associação de ideias. O ato de falar sem freios, sem um objetivo preciso nem um momento exato de interrupção, aproxima-se de uma prática terapêutica: as personagens se expõem como num confessionário ou divã, protegidas pelo anonimato de rostos e pelo distanciamento da câmera, que se priva de buscar histórias não fornecidas voluntariamente por elas mesmas. A direção humilde se limita a abrir o espaço para que elas se comuniquem, sem direcionar as confissões rumo a um ponto de catarse ou transformação. O filme se converte num espaço seguro, uma reunião de amigas via montagem, sem qualquer obrigatoriedade moral ou de finalidade a partir dos relatos. A costura com cenas neutras da natureza ou dos céus isenta a diretora de qualquer julgamento moral — para além da óbvia empatia com as mulheres, é difícil saber o que Rodriguez pensa a respeito de cada uma delas, ou de seus percursos específicos. Piedade, admiração ou surpresa estão ausentes deste ponto de vista plácido, capaz de escutar e registrar as conversas com igual distanciamento.

Assim, as maiores qualidades de Mis Dos Voces também poderiam constituir suas fraquezas — em particular, o fato de o dispositivo nunca se desenvolver. Ao longo de sucintos 68 minutos, o pressuposto das vozes etéreas e cortadas de um referencial se sucedem sem transformação. Seria possível buscar formas de atrito, repetição, ou contrastes nas falas das heroínas. Ora, suas vozes se convertem num fluxo único, passando a ilustrar um discurso médio da presença latina no Canadá. Por que estas três seriam particularmente representativas da imigração, ao invés de outras? As classes sociais e formações profissionais teriam sido determinantes na assimilação à cultura local? Nunca saberemos, visto que a investigação sociológica passa longe dos planos da diretora. Talvez Rodriguez pudesse extrair falas mais potentes e encontrar equivalências imagéticas provocadoras, entretanto, evita chamar atenção a si mesma, para além do curioso dispositivo da voz off. Ao final, é difícil associar os rostos recém-descobertos às vozes que vínhamos escutando até então: qual delas é Ana, Marinela e Claudia? Isso importa? Saímos com a estranha sensação de conhecê-las bem, e de não conhecê-las de modo algum. Afinal, o projeto efetua o gesto simultâneo de se aproximar da intimidade enquanto se afasta da identidade. Estas histórias pertencem apenas a elas, mas também pertencem a todas as mulheres, e a mulher nenhuma.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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