Crítica


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Sinopse

Um jovem desenvolve o costume de admirar as pessoas que passam pelas ruas do centro de Porto Alegre através da janela de sua casa. No entanto, transformações na política brasileira fazem com que antigas feridas sejam reabertas. De repente, ele encontra dificuldades em separar a vida no apartamento e os acontecimentos externos.

Crítica

Embora as novas tecnologias de telefones celulares e câmeras caseiras tenham produzido uma forma inédita de vício e de narcisismo, elas também transformaram novas classes sociais em potenciais cineastas. Alguns dos projetos mais interessantes do cinema nacional recente surgem da adequação do conteúdo amador a uma visão de mundo urgente, como se os criadores não pudessem mais esperar para reunir o orçamento necessário a um grande projeto. Isso não implica em obras fáceis ou fracas, pelo contrário: os projetos do gênero fazem prova de criatividade ao explorar a textura digital de baixa qualidade, utilizar recursos à disposição de qualquer um e moldar o tempo com uma liberdade que produções onerosas não poderiam fazer. Esta é a vantagem do baixíssimo orçamento: a capacidade de pesquisar registros, conceitos, com menos pressão e menos satisfações a dar.

Mirante se insere nesta linha de concepção do cinema. Rodrigo John dirige, roteiriza, produz, interpreta, monta as imagens filmadas da janela de seu apartamento ao longo de aproximadamente dez anos. Por um lado, o olhar afiado à banalidade proporciona momentos dignos de um bom cronista, a exemplo das interações dos vizinhos dentro dos seus apartamentos (o casal tão próximo um do outro, mas sem se tocar) e dos barcos que atravessam o porto ao longe, por entre os prédios. Existe um caráter de contemplação estética, misturado ao voyeurismo do acesso à vida alheia, que resulta num complexo exercício de observação. Por outro lado, a sobreposição de sons relacionados à política nacional (gritos contra Dilma, os votos pró e contra a presidenta durante o golpe de 2016, frases de Bolsonaro e palavras de ordem de manifestantes progressistas nas ruas) permite inserir as imagens num contexto sociopolítico preciso. Afinal, observar as ruas brasileiras antes e depois de junho de 2013 não possui o mesmo valor.

Enquanto prática conceitual, o resultado é profundamente instigante. A noção de autoria, definida pela capacidade seleção, controle e agenciamento da representação do mundo (mesmo dentro do documentário) é desafiada pelas imagens que soam apropriadas, ao invés de criadas para este fim, e justapostas a sons tampouco registrados pelo diretor. O filme produz ao mesmo tempo a sensação de onipotência, por observar a todos sem ser observado em retorno, e de passividade, por não controlar os acontecimentos nas ruas, tendo que se contentar com o espetáculo fornecido pelo acaso. Algumas cenas parecem encenadas para a câmera (a mulher grávida à janela), mas de modo geral, o projeto brinca com a pulsão do olhar, com a fusão entre o público e o privado e a noção ao mesmo tempo excitante e tediosa da espera - não se sabe exatamente o que se está esperando, mas pela amplitude do escopo, tudo poderia acontecer dentro da moldura da janela, análoga ao enquadramento cinematográfico.

A noção de ponto de vista é desafiada dentro deste contexto. Nosso protagonista observa tudo, mas não sabemos ao certo o que pensa a respeito daquelas imagens, oferecidas para nós com poucos filtros. A única forma de organização vem da própria montagem, que trata de reunir sons e imagens de modo a criar fricções ou aproximações inesperadas. Estas composições geram belos retratos da política nacional, além de sugerirem a posição de passividade da classe média que assiste à política pela televisão e de dentro de suas casas (a exemplo do protagonista e dos paneleiros), sem descer às ruas para protestar. No entanto, pela observação equilibrada dos dois lados, pela ausência de posicionamento deste protagonista desprovido de conflitos ideológicos (munido apenas de uma desilusão amorosa), Mirante talvez se reduza à constatação dos fatos, o que pode ser interpretado como conformismo. Perceber que algo grave aconteceu no país sem permitir que este conflito invada as casas, os indivíduos e transforme a narrativa desperta uma impressão de apatia que se tornaria rica apenas se representada de maneira crítica. Ora, nosso protagonista e alter-ego possui olhos onipresentes, porém se cala diante do mundo. A política, assim como as fachadas dos prédios e os barcos ao longe, corre o risco de se transformar em paisagem.

Se a parte política mereceria aprofundamento, ao menos a poesia é muito bem trabalhada. Desde a bela dança das sombras sobre as fachadas no início, até as acelerações que aproximam o documental da animação em stop motion, existe uma pluralidade de recursos explorados com ousadia, sem medo de revelar o dispositivo – vide a montagem fragmentada, inserindo rápidos flashes, a música em alto volume, a câmera observando personagens que observam outros personagens rumo ao final. Mirante também se torna uma obra metalinguística, um exercício sobre o fazer cinema, sobre a tessitura do tempo, sobre as infinitas possibilidades criativas da montagem, e sobre a maneira como o individual está costurado ao coletivo, algo que John transmite pela frutífera dissociação de som e imagem.

O cineasta se apropria de seu conceito inicial e o desenvolve sem se repetir, sem esgotar as possibilidades criativas destas associações de fachadas, de pessoas anônimas e de instantes tragicômicos do cenário político. Existe uma tendência a brincar com este material de maneira lúdica, reinterpretando trechos tão conhecidos da nossa história recente (o golpe, a posse de Temer, a eleição de Bolsonaro) pela ótica de um sujeito comum, sem nome nem história. Mil possibilidades se apresentavam diante dos fragmentos cotidianos de uma década e, de fato, muitas formas de associação se desenham ao longo de 78 minutos, sem que o resultado soe aleatório. Haveria a possibilidade de ser ainda mais anárquico, mais radical nas formas para encontrar um ruído à altura do radicalismo das transformações políticas. Mesmo assim, John prefere a poesia ora irônica, ora melancólica, e sempre esteticamente agradável.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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