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Sinopse

Acusado de matar a filha de um comandante, um homem com deficiência intelectual precisa provar sua inocência.

Crítica

Não é muito difícil, nem complexo, fazer alguém chorar no cinema. Coloque um bebê passando fome, um adulto injustiçado lutando contra o sistema, uma mulher apaixonada privada do homem que ama, o pai chorando a perda precoce do filho. Aposte em tragédias, injustiças, saudades, humilhações. O processo de fazer alguém refletir e questionar o que está vendo revela-se muito mais ardiloso. Mesmo assim, certa vertente do cinema comercial ainda aposta na virtude do cinema-purgatório, aquele destinado a suscitar emoções epidérmicas. Filmes como Uma Lição de Amor (2001), Um Sonho de Liberdade (1994), À Espera de um Milagre (1999), A Corrente do Bem (2000), A Vida É Bela (1997), À Procura da Felicidade (2006) e tantos outros carregados de grandes valores em seus títulos genéricos constituem o que os americanos chamam de tearjerkers, termo pertinente para sugerir a lágrima extraída à força do espectador.

Milagre na Cela 7 (2019) possui um pouco de todos estes filmes citados acima. Ele combina um pai com deficiência intelectual acusado de um crime que não cometeu, uma garotinha linda e órfã que sonha em ficar sempre junto dele, uma vovó amorosa com problemas de saúde, uma professora persistente que enfrenta militares em nome da aluna, vilões sanguinários da cadeia, um diretor inescrupuloso do presídio, crianças que praticam bullying etc. O mundo é dividido em bons e maus: a pureza se encontra nas crianças e nos humanos desprovidos de razão, enquanto a corrupção reside nas altas esferas do poder. Há mortes, doenças e acidentes a cada cinco minutos na jornada de redenção dos presos para ajudar o colega que descobrem ser inocente. O mundo terá que se unir numa improvável “corrente do bem” – olha ela aí novamente – para ajudar o detento com idade mental de uma criança. A premissa previsível decorre de uma fórmula de sucesso, no caso, a comédia dramática 7-beon-bang-ui seon-mul (2013), que já ganhou uma refilmagem filipina, indonésia e, agora, turca. O diferencial surge na questão do tom: o diretor Mehmet Ada Öztekin apaga qualquer traço de humor para mergulhar num melodrama de fazer inveja às telenovelas mexicanas.

Embora o roteiro transborde de ingredientes sentimentais, o aspecto indigesto surge de fato com a direção. Seria possível trabalhar com o mesmo texto de maneira comedida, explorando os espaços fora de quadro ou os sons em off, de modo a atenuar violências. Tempo de Cavalos Bêbados (2000), por exemplo, trazia um coquetel perfeito para as lágrimas ao combinar crianças órfãs passando fome, trabalho forçado infantil, doenças incuráveis etc. No entanto, o projeto iraniano lidava com seus conflitos com uma brutalidade ímpar, o que imprimia distanciamento e convidava ao debate. O projeto turco parte para um caminho oposto: não basta que o adulto com retardo sofra: ele precisa chorar em close-up, enquanto a câmera efetua um zoom in em seu rosto e trilha sonora de pianos tristes aumenta o volume. A quantidade de câmeras lentas, imagens do pôr do sol e intromissões musicais beira a obscenidade: poucos filmes são tão escancaradamente manipuladores quanto este aqui. O cineasta chega ao cúmulo de utilizar a figura de pássaros presos em gaiola para representar a privação de liberdade do protagonista, o que constitui o clichê número um a evitar em qualquer aula básica de roteiro e/ou direção.

Mehmet Ada Öztekin vai além, utilizando lâmpadas de postes para representar a luz divina sobre o protagonista, canções de ninar sussurradas em sugestão de inocência, gelo seco para tornar uma forca ainda mais assustadora, e mesmo planos aéreos divinos com o personagem incrédulo olhando aos céus. Nenhum recurso é banal o bastante para o diretor que acumula tiques até se aproximar da paródia involuntária do drama prisional. Ao ator principal, Aras Bulut Iynemli, o projeto constitui um presente e uma armadilha. Por um lado, parece excelente para o galã turco demonstrar sua amplitude dramática, chorar e sofrer a gosto, numa composição histriônica que já foi considerada, algumas décadas atrás, como “atuação para Oscar”. Por outro lado, instrumentaliza a figura da vítima e do mártir, impossibilitando ao intérprete fornecer qualquer alternativa para além da exteriorização imediata dos sentimentos. Segurar o choro ou declarar uma falsa felicidade quando se está triste seriam algumas alternativas interessantes para brincar com o relevo emocional da narrativa, porém Aras Bulut Iynemli se resume ao corpo sofredor.

Além disso, o projeto levanta a questão cada vez mais contemporânea sobre o lugar de fala: a composição do adulto com retardo, que já pertenceu a Sean Penn em Uma Lição de Amor, ou a Juliette Lewis e Giovanni Ribisi em Simples como Amar (1999) soa cada vez mais anacrônica, para não dizer ofensiva. A apropriação do corpo e da identidade marginal por indivíduos em posição de privilégio tem despertado a interpretação da atuação enquanto fantasia, destinada a salientar a diferença em relação ao ator original ao invés da humanidade em comum entre eles. Aras Bulut Iynemli é convidado a reforçar os gestos relacionados ao retardo, sendo portanto reduzido a uma figura de incrível fragilidade e passividade na qual se coloca popularmente pessoas com deficiências. A conclusão de Milagre na Cela 7 aposta em reviravoltas absurdas, escolhidas para reforçar o aspecto religioso do título. Mesmo que pertença à espiritualidade dos muçulmanos, o filme se debruça numa religiosidade tão ampla e piedosa que pode ser facilmente adaptada a qualquer país ou cultura. O projeto se encerra na recompensa do choro, uma das formas mais superficiais de comunicação que o cinema é capaz de proporcionar.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Bruno Carmelo
2
Chico Fireman
5
MÉDIA
3.5

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