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Sinopse

Mais do que revolucionar a linguagem teatral no Brasil, o Teatro Oficina estendeu sua influência estética por diversas outras áreas artísticas em mais de 60 anos de existência.

Crítica

Para os diretores Lucas Weglinski e Joaquim Castro, a história do Teatro Oficina vai além de espetáculos marcantes e atores renomados em cena. Eles enxergam o Oficina enquanto entidade única, uma força política e cultural. A evocação das décadas de existência do teatro combina expressão artística, resistência às grandes corporações, enfrentamento da ditadura militar e ocupação urbana. A dupla evita a menção às datas históricas, aos números de público ou de faturamento, evita prêmios e reconhecimento institucional. Os cineastas fogem tanto à reconstituição puramente histórica quanto ao retrato ufanista do grupo. Máquina do Desejo surpreenderá o espectador interessado no documento de uma verdade, ou na apreensão direta do real. O documentário investe num mergulho etéreo do Oficina percebido como instituição e patrimônio da cidade de São Paulo. Os artistas se fundem com o espaço físico no Bixiga, com as ruas da cidade, e com seus personagens – a representação se torna modo de vida.

O primeiro ato constitui o trecho mais árduo para o espectador. É difícil penetrar no mar de vozes sem rosto nem nome, de mesmo que não se entra com facilidade na sucessão de menções às peças célebres: O Rei da Vela, Galileu Galileu, Na Selva das Cidades etc. Durante os quarenta primeiros minutos, a sessão se atém à evocação de espetáculos, sem citar os elencos, o trabalho de adaptação ou outros elementos de contextualização. Exceto pelas importantes citações a respeito da censura promovida pelo governo militar, as apresentações parecem existir dentro de uma bolha hermética. É bastante curioso que jamais se explore a relação do Oficina com o público. O terço inicial fornece precioso material de arquivo com apresentações da época e entrevistas do período da ditadura, de suma relevância para pensar o Brasil conservador de 2021. No entanto, o roteiro só deslancha quando ignora a obrigatoriedade de elencar peça após peça, para discutir a preservação do edifício, a luta contra o império comercial de Sílvio Santos, um assassinato homofóbico etc.

Por um lado, a decisão de manter a voz das entrevistas sem o rosto dos artistas produz um efeito notável. Com exceção de Zé Celso, visto em trechos associados ao som referente, os demais atores se sucedem em falas indistintas. Desta maneira, expressam-se em uníssono, enquanto corpo único, coerente e coletivo. Weglinski e Castro ultrapassam o retrato personalista de estilo reverencial – os nomes surgirão no letreiro final, e para o espectador de pouca familiaridade com os atores em cena, estes permanecem anônimos. O Oficina se converte numa entidade superior a todos os seus membros – em outras palavras, uma organização incorpórea, ironicamente dedicada ao exercício do corpo. A sequência em que Zé Celso explica a relação entre as torturas sofridas pelas mãos dos militares e a valorização posterior do gozo em suas peças diz muito sobre as relações de tensão e estímulo entre os governos reacionários e a voracidade da produção artística contemporânea. Fatos essenciais à história do teatro, a exemplo do incêndio e o desabamento do teto, são revelados sem falas, em silêncio. Os cineastas acreditam na capacidade da imagem (e dos recortes de jornais da época) em expressar significado por si própria.

Por outro lado, a insistência em preservar os rostos no anonimato ao longo de toda a projeção produz um retrato frio para um grupo tão caloroso. O diretor da trupe possui um estilo messiânico e excessivo, baseado numa “loucura lucidamente irracional consciente”, de acordo com um depoimento. No entanto, as vozes jamais trazem qualquer dissonância a respeito desta trajetória de resistência. São ignorados os motivos de escolha de cada peça, o dia a dia dos artistas residentes no local, os sucessos ou fracassos de espetáculos, o destaque de um ou outro ator. A rápida menção à importância das mulheres se dilui na narrativa (elas continuaram relevantes nas gerações posteriores?); a incursão cinematográfica do Oficina desaparece num corte de montagem (eles pararam de fazer filmes? Por quê?); o exílio de Zé Celso e a crise interna no grupo em 1971 sequer são mencionados. O retrato de uma companhia horizontalizada possui grande beleza, porém se confronta a uma realidade mais complexa. Haveria ferramentas poéticas e ousadas – em consonância com o estilo do grupo – de incluir rostos, personalidades e subjetividades no filme, mantendo a premissa da dissociação entre imagem e som.

Ao final, Máquina do Desejo oferece um panorama histórico anti-historicista, gerando uma experiência ao mesmo tempo instigante e frustrante. Apesar do alívio de não encontrarmos uma enésima estrutura de talking heads, o filme tampouco nos permite conhecer quem fez e ainda faz o teatro, e de que maneira o grupo evoluiu junto à sociedade brasileira. Como os espetáculos mais recentes dialogam com outras formas de teatro? De que maneira os artistas enxergam o mundo? Como ensaiam, estudam e se preparam para o trabalho? Não sabemos, para além da liberdade transparecida nas peças, vistas em fragmentos livres. O projeto carrega um inesperado aspecto fantasmagórico, mencionando uma forma de arte viva sem se colar ao tempo presente, evitando simultaneamente reverenciar o passado. O olhar da direção se situa num distanciamento extremo (brechtiano, talvez) de quem possui forte interesse pelo teatro, sem o desejo de embrenhar a câmera pelas coxias, acompanhar os movimentos presentes, interagir com os artistas. Weglinski e Castro estudam o Teatro Oficina na posição de pesquisadores dedicados, rigorosos e um pouco desafetados. Falta o delírio lúcido de Zé Celso ao documentário que busca representá-lo.

Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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