Crítica


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Sinopse

A pianista Gabriela se prepara para o próximo concerto. No entanto, os sonhos com a mãe falecida há um ano dificultam a concentração. Durante uma manhã de domingo, uma viagem pelo interior do Rio de Janeiro permite fazer as pazes com o passado.

Crítica

Gabriela (Raquel Paixão) se senta ao piano e toca uma música. O primeiro aspecto de destaque no curta-metragem diz respeito à qualidade da performance: é evidente que se trata de uma pianista real, executando um trecho de Chopin em plano aberto, sem cortes, diante de um enquadramento fixo e impassível. O diretor Bruno Ribeiro se cola à realidade num filme que, aos poucos, abraçará a fantasia. É raro assistir a filmes estrelados por uma mulher negra em tamanha posição de controle e maestria, assim como surpreende ver a artista de camisola, em modo despojado, praticando uma arte associada à erudição e aos procedimentos formais. Manhã de Domingo (2022) consiste num longo gesto de despojamento e expurgo, quebrando com a rigidez esperada da música clássica em detrimento de um espaço acolhedor, de afetos. Aqui, a sonoridade ajuda a protagonista a se reconectar com o passado, com a memória da mãe falecida, com o companheiro deitado no sofá. Rompe-se com a dinâmica exclusiva do artista, num palco privilegiado, dirigindo-se a um público posicionado rigidamente à sua frente: os sons são produzidos também para a própria Gabriela, para a lembrança materna, para o prazer e a necessidade da prática. Dentro de uma estrutura bastante silenciosa, a música ultrapassa o status de obra artística, convertendo-se em forma de comunicação e maneira de se colocar no mundo. A pianista ocupa os espaços domésticos e públicos através de sua musicalidade.

Neste momento inicial, entretanto, existe apenas a protagonista de costas e o espectador que a observa. A posição do público constitui um dos elementos fascinantes do projeto: acreditamos que sons e performances ocorram para nós, em exclusividade, até percebermos que somos meros voyeurs de um instante de cumplicidade fornecido a terceiros. O elemento mais fascinante do filme se encontra no trabalho ativo do espaço fora de quadro. Sempre há personagens inesperados testemunhando as cenas antes de nós mesmos, em outro ângulo, alheios ao escopo da imagem. Um recital será apresentado ao namorado; e outro, à falecida mãe. Gabriela nada numa piscina, e durante alguns segundos, parece observar a si própria na margem distante. Um garoto tem aulas de piano com a professora, até descobrirmos a mãe do menino admirando o progresso musical no canto da sala. O hors champs se converte num local ativo, ocupado, algo conveniente à proposta de valorizar as geografias. A anedota pessoal compartilhada pelo motorista de uma kombi serve à única passageira, Gabriela, ainda que seu rosto fique ausente durante a maior parte desta história sobre infâncias musicais. O espectador é levado a completar o espaço que falta, ou projetar um pouco de si nas digressões fornecidas a terceiros. Ribeiro solicita um espectador ativo.

Em paralelo, a jornada adquire um ritmo terno e íntimo. As imagens se abrem numa paleta fria, azulada (vide as paredes da casa, os quadros, os figurinos), até permitir o calor na residência final, de paredes alaranjadas. A princípio, a heroína é vista de corpo inteiro nas imagens, solitária em ambientes maiores do que sua presença física: a piscina, a sala do recital, o veículo, as ruas vazias do interior do Rio de Janeiro. A conclusão permitirá o único close-up da atriz, quando o som, pela primeira vez, se restringirá ao espaço extra-quadro, permitindo à subjetividade da atriz ocupar a integralidade do plano. O cineasta promove um empoderamento: embora seja associada à música desde a cena de abertura, Gabriela poderá se sobrepor ao ofício na fase final, quando a relação com o passado e com a mãe se impõem à narrativa. O curta-metragem inteiro pode ser interpretado como uma apresentação desta personagem, cujos anseios se completam apenas no belo final, tão aberto quanto propício à sua jornada. Explica-se o mínimo possível, visto que o autor confia na potência das imagens e na capacidade do espectador em desvendá-las. Este seria um filme sobre a jovem musicista, mas também um filme com ela, disposto a acompanhar seus passos por onde for. Paira a sensação de testemunharmos em silêncio uma ampla revolução interna, revelada na íntegra apenas ao espectador onisciente. O mundo ao redor jamais suspeita do que este dia significa na vida da artista.

Manhã de Domingo impressiona, no final, pelo equilíbrio do gesto: não existe uma única música em excesso, nenhuma cena dilatada demais, nenhum exibicionismo da câmera, nem vaidade da direção. É raro encontrar tamanho despojamento e coesão num trabalho universitário, ciente tanto de suas possibilidades criativas quanto das limitações de produção. A montagem de Vinícius Silva, junto ao trabalho de som de Bernardo Uzeda, permite que as sequências se estendam até o limite em que sugiram algo além de seu significado imediato: este plano estaria demorando porque o diretor insinua a existência de algo subentendido acontecendo ali, ou alguém observando? Somos levados a questionar o mistério de cenas que perduram, apesar de parecerem ter dito tudo o que lhes cabia. O curta preserva o mistério das imagens numa fotografia parcialmente naturalista de Wilsa Esser, ainda que impregnada de devaneio. Não há nada mais verossímil do que as mãos ágeis de Raquel Paixão ao piano, e mais fantástico do que os inúmeros espaços urbanos vazios, existindo apenas para a protagonista. O fato de Gabriela mencionar um sonho na primeira cena condiciona a leitura onírica do resultado. Real e fantasia se encontram, porém discretamente, quase em segredo, revelando suas fronteiras apenas ao espectador. Somos o público do recital, mas também de uma jornada de magia segura e singela, que nunca pretende romper com o real. Ribeiro investe num cinema de fluxo, onde surpresas e resoluções evitam provocar ruptura de tons na narrativa. Os franceses usam o termo filme-riacho para as obras lineares de extensa duração, mas talvez a noção de correnteza se estenda ao ritmo peculiar de um curta-metragem.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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