Sinopse
A protagonista de Manas é Marcielle, uma jovem de 13 anos que vive na Ilha do Marajó (PA). Aos poucos ela começa a entender que o futuro não lhe reserva muitas opções. Encurralada pela resignação da mãe e movida pela idealização da figura da irmã que partiu, decide confrontar a engrenagem violenta que rege a sua família e as mulheres da sua comunidade. Premiado no Festival de Veneza 2024.
Crítica
O Brasil que a cineasta Marianna Brennand nos apresenta em Manas é profundo. Vivendo na Ilha do Marajó, no Pará, os personagens são regidos mais pela tradição e pelos costumes do que necessariamente pela lei jurídica. Num território tão afastado dos grandes centros impera aquilo que sempre aconteceu, as práticas impostas pela força e pouco questionadas porque parecem naturais de tão repetidas. Nesse contexto está Marcielle (Jamilli Correa), menina de 13 anos que mora com os pais religiosos e os irmãos numa casa com pouco conforto à beira do rio. Quando a encontramos pela primeira vez, ela está atingindo a puberdade e o fato de esconder a menstruação da família parece uma manifestação relativamente normal de desconforto – afinal de contas, Marcielle está saindo da infância e entrando na vida adulta, fase para ela desconhecida. No entanto, a jovem prefere guardar essa informação porque sabe como as coisas funcionam nesse lugar em que as violências masculinas são naturalizadas. Marianna valoriza a relação dos personagens com a natureza, embora a sua câmera esteja sempre mais próxima das pessoas do que normalmente estaria dentro dessa ideia de conectar a gente ao meio ambiente. Fugindo à lógica dos planos abertos que situam o humano como fração pequena de uma engrenagem maior, a diretora parte da proximidade com os corpos para valorizar os seus dramas.
Desde o começo o que espanta positivamente é a enorme capacidade da jovem Jamilli Correa de expressar com muita segurança e sensibilidade o turbilhão de sensações que atravessa a sua personagem. Com a força de uma atriz veterana, a iniciante constrói um semblante no qual a complexidade das circunstâncias encontra o seu lugar de expressão. Sua Marcielle é uma menina impotente diante daquilo que sempre aconteceu em sua casa e que se repete na vizinhança como um costume pouco questionado. Mas Marianna não revela logo o que está acontecendo de ruim por ali, preferindo a isso deixar alguns pequenos mistérios no horizonte enquanto aparentemente está mostrando somente uma família com certas privações econômicas e, especificamente, uma menina que precisará em breve escolher se fica ou vai embora para continuar a vida. E o principal desses enigmas que colocam uma pulga atrás da nossa orelha é a ausência da irmã mais velha apenas mostrada em fotografias e citada como “aquela que não dá notícias”. Por que será que a primogênita foi embora e nunca mais deus as caras ou ao menos sequer mandou sinais de que está bem? De cara parece que a precariedade do lugar oferece uma resposta satisfatória a essa indagação, mas aos poucos percebemos que há algo mais grave. E Marianna trabalha bem esse suspense pontual que adiciona uma inquietação à protagonista.
Marianna Brennand é muito cuidadosa ao mostrar uma praticamente infância sendo rompida drasticamente pela violência. Melhor dizendo, por várias violências. Se o lar superficialmente acolhedor, a despeito dos grandes problemas financeiros, logo se transforma num pesadelo de contornos claros para Marcielle, as alternativas não são menos convidativas. Na região não é excepcional as meninas pré-adolescentes se submetendo à prostituição nas balsas que passam pelo rio em busca de um pouco de subsistência e independência financeira. Mesmo que sejam quase incentivadas pela família a praticar isso como forma de ajudar em casa, elas estão sujeitas aos olhares reprovadores da mesma comunidade hipócrita. Então, logo Marcielle se vê nesse lugar de ceder o seu corpo a um balseiro para tentar escapar de uma vida miserável. Pelo menos ao subir na embarcação e se deitar com um sujeito pagante ela está exercendo algum tipo de controle sobre a própria vida. No entanto, habilmente Marianna também questiona essa tal liberdade, pois se a protagonista não tem qualquer alternativa melhor, ela é levada a se achar relativamente livre por simplesmente escolher a qual brutalidade emocional será submetida. Até porque a casa antes somente pouco convidativa por conta da falta de espaço e das privações econômicas logo também se transforma no covil de um lobo faminto que age de modo impune.
Manas é um filme-denúncia na medida em que escancara em termos ficcionais uma realidade angustiante. Numa terra onde homens estupram as suas filhas, as mães e demais mulheres da região geralmente são confinadas (pela tradição) a um lugar de resignação. Até porque muitas delas foram vítimas acolhidas por homens que as teriam tirado de uma situação dramática, quando na verdade elas foram apenas realocadas dentro de um ciclo esfomeado de selvageria. Por isso a mãe interpretada por Fátima Macedo é tão complexa. Ela oscila de cúmplice à vítima em questão de segundos. Já o sempre excelente Rômulo Braga dá corpo a um homem superficialmente brando, mas que repete a violência de gênero como se isso fosse o seu direito adquirido enquanto chefe de família. Além disso, esse personagem do pai representa o ideal hipócrita da sociedade que esconde a sua podridão sob o fino véu da religiosidade. Situada no centro de práticas agressivas regidas por um patriarcado supremacista está a pequena Marcielle, menina privada da inocência, filha de uma terra paradisíaca, mas que está gangrenada pela masculinidade criminosa. E faz todo sentido que seja uma mulher (interpretada por Dira Paes) lutando para interromper isso e outra (vivida por Clébia Souza) assumindo a posição verdadeira de cristã. No fim vem a catarse, a explosão que resolve problemas imediatos. Mas e o amanhã?
Filme visto na 11ª Mostra de Cinema de Gostoso em novembro de 2024.
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