Crítica


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Sinopse

Karole e Ali sonham em ter um filho juntas. O casal inicia um longo processo de inseminação artificial e fertilização in vitro, contando com apoio de amigos e familiares, mas também enfrentando o preconceito da conservadora sociedade italiana.

Crítica

Karole (Linda Caridi) e Ali (Maria Roveran) são definidas pelo desejo de terem um filho. Da primeira à última cena, o casal discute as possibilidades de inseminação artificial e fertilização in vitro. A trama se abre literalmente com um pesadelo a respeito da maternidade (o sonho do bebê desaparecido) e se encerra com uma notícia a respeito do tema. Desconhecemos estas mulheres em seus trabalhos, no dia a dia juntas, nos instantes de carinho construídos ao longo de anos. Ao narrar sua história de vida, a cineasta Karole Di Tommaso prefere se concentrar apenas no essencial. Mesmo os flashbacks da juventude e a viagem à casa da família servem para discutir os planos da gestação e receber a confirmação simbólica de que seriam boas mães. Apesar da busca pela delicadeza, o ponto de vista se mostra obsessivo em relação ao conflito único: não se trata de duas mulheres que, entre outros percalços, cogitam a maternidade, e sim de dois corpos prontos para serem injetados com hormônios, fertilizados e testados. A resiliência se converte em prova de amor.

Diversas produções sobre temas semelhantes (vide o excelente Mais uma Chance, 2018) se concentram no desgaste psicológico das tentativas, através de inúmeras cenas em clínicas, com as cores frias dos consultórios e salas de procedimentos. Em contrapartida, Mãe+Mãe (2018) prefere uma jornada solar. A quase integralidade das cenas se passa de dia, dentro de apartamentos bem iluminados e multicoloridos, ou no campo, com muito pôr do sol, flares e composições românticas ao piano. As personagens são gentis e ingênuas, pedindo desculpas com frequência, e injetando hormônio uma na outra enquanto baixam a cabeça e sussurram: “Desculpa essa violência”. O cuidado em proteger estas personagens tende à idealização: elas constituem figuras unicamente bondosas, a ponto de serem exploradas pelo ex-namorado abusivo e pelos sucessivos estrangeiros que alugam um quartinho dentro de casa. Para sugerir a felicidade do casal, a cineasta multiplica as cenas de ambas rindo sob os lençóis brancos, se abraçando com expressão de piedade e se olhando com uma ternura infinita. Qualquer dilema moral ou psicológico se torna secundário porque elas se amam.

Tamanha crença no poder reparador dos afetos se traduz numa estética herdeira das telenovelas e dos comerciais de televisão. Di Tommaso está preocupada em vender uma ideia de maneira assertiva, e por isso insiste no fato de que a rotina das duas é cor de rosa, ou no caso, amarelo ouro, extremamente saturada, com paisagens idílicas e viagens turísticas entre Itália e Espanha para os processos de fertilização. A cineasta se esforça em sobrecarregar cada cena de forte carga simbólica e estética: são inúmeros sonhos em câmera lenta, performances musicais, flashbacks com efeitos “vinheta” sobre a paisagem. Quando sofrem um ataque homofóbico no transporte público, Karole e Ali sorriem. Diante do padre agressivo, a mulher lésbica lhe oferece a outra face, no caso, um pedaço de sanduíche. O projeto evita problemas verossímeis devido à tendência em romantizar cada passo deste processo. O improvável quiproquó envolvendo uma chave quebrada e o dinheiro oferecido milagrosamente podem se referir a experiências reais da autora, no entanto, são representados de maneira fácil e inconsequente. O pressuposto de mise en scène consiste em transformar o projeto num feel good movie, custe o que custar.

Esta decisão resulta num tom cômico histriônico, empregado para balancear o drama da gravidez. Os estrangeiros que passam pela casa representam figuras paspalhonas, assim como o ex-namorado de Karole. Diante da bondade das protagonistas, o resto do mundo é composto por figuras caricaturais. Nenhum personagem coadjuvante soa realista dentro deste contexto, no entanto, serve como fuga à necessidade de mergulhar na psicologia das personagens. É uma pena que o tema seja reduzido a uma comédia de idas e vindas à clínica, ao invés de um estudo sobre angústias e pressões impostas às mulheres (e aos casais lésbicos, em particular) no que diz respeito à procriação. As atrizes assimilam o exagero proposto pela direção: Maria Roveran adota uma voz doce até demais, ao limite do infantil, enquanto Linda Caridi mantém os olhos arregalados e a boca aberta, torcendo os lábios em expressões incompreensíveis. Elas se convertem em pequenos pássaros frágeis, equilibrando-se dentro de um apartamento tomado por rinocerontes. O feminino volta a simbolizar a delicadeza, a fragilidade e o instinto de proteção, o que talvez desperte reticências em algumas espectadoras.

Imagine o filme sobre um estudante prestando a prova do vestibular. Da primeira à última cena, ele estuda, até o dia de fazer a prova. Quando descobre o resultado da possível aprovação, a história se encerra. Mãe+Mãe adota um princípio idêntico: como o único conflito destas personagens se encontra na gravidez, a chegada de um resultado final provoca um corte brusco, encerrando o filme. Pelo tom otimista da produção, é possível deduzir com antecedência qual será o desfecho. Ora, somos privados das reflexões sobre as consequências para o futuro: as heroínas se limitam a corpos férteis ou inférteis. Uma vez determinada a resposta médica, Karole e Ali não possuem mais função narrativa, e o projeto se encerra por W.O. Esta jornada de incertezas, dificuldades econômicas e familiares, sobretudo aplicadas a um casal LGBT, poderia resultar num estudo de complexidade muito maior do que a instrumentalização didática sobre o assunto. Na busca por dialogar com um público amplo e familiar, Di Tommaso abre mão de dificuldades reais para investir na jornada de pessoas que, mediante grande esforço, podem concretizar qualquer sonho desejado. Quem dera a vida funcionasse assim.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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