Lynch/Oz

Crítica


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Sinopse

Considerado um dos grandes autores do cinema, David Lynch nunca escondeu que O Mágico de Oz (1939) é um de seus filmes favoritos e de referência. O documentário destrincha essas influências ao longo da obra de Lynch.

Crítica

Uma das características fundamentais do cinema de David Lynch é o enigma. Esse norte-americano é um artista que cria de mãos dadas com o mistério, o que torna a tentativa de desvendá-lo um impulso irresistível. De certo modo, ele nos toma por “inocentes” em busca de experiências, exatamente o tipo de personagem recorrente em seus filmes – aqueles que certos teóricos comparam a crianças que, mesmo alertadas sobre os perigos, metem o dedo na tomada, pois guiadas por uma curiosidade irrefreável. Lynch/Oz é uma tentativa de lançar luzes específicas sobre essa obra que vem intrigando cinéfilos e especialistas desde os anos 1970. O cineasta Alexandre O. Philippe tem uma hipótese que resolve colocar à prova: o cinema de David Lynch seria integralmente atravessado pela influência de O Mágico de Oz (1939), o mítico filme de Victor Fleming que mostrava uma menininha carregada por um tornado do Kansas, nos Estados Unidos, à terra fantástica em que encontra leões covardes, homens de lata sem coração, espantalhos descerebrados, bruxas boas e más. Seu documentário traça uma série de paralelos relativamente sólidos que, em sua maioria, fazem bastante sentido como dados comprobatórios. Para isso, o realizador utiliza expedientes comuns (como as comparações de cenas), mas também chama como reforço seis colegas a fim de expandir o assunto ao âmbito geral da criação.

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Ao longo dos últimos anos, Alexandre O. Philippe tem se mostrado um cineasta especificamente interessado pela mítica do cinema. São dele The People vs. George Lucas (2010), Memory: As Origens de Alien, o 8º Passageiro (2019) e 78/52 (2017), este sobre a famosa cena do chuveiro de Psicose (1960). Com Lynch/Oz, ele cruza emblemas do cinema norte-americano de fases distintas. David Lynch é um dos nomes que ajudaram a renovar o panorama estadunidense nos anos 1970 (o da chamada Nova Hollywood) com suas obras radicais que transitavam entre a realidade, a representação e o onírico. Já o longa-metragem estrelado por Judy Garland é uma das glórias da Era de Ouro Hollywood, filme que coloca a fantasia a serviço da capacidade cinematográfica de nos transportar para mundos com tonalidades, características e camadas próprias. Embora o cineasta não enfatize tanto essa ponte óbvia entre a Velha e a Nova Hollywood, ela está ali nas entrelinhas, se manifestando constantemente na fricção entre clássico e moderno. Há uma preocupação visível com a comprovação da tese de que Lynch e Oz têm tudo a ver – algo que o próprio David Lynch já havia revelado, mas que (salvo engano) nunca tinha sido investigado em forma de documentário. Em certos momentos, o resultado obtido é a constatação de que Lynch deve ter sido profundamente afetado por O Mágico de Oz.

Lynch/Oz é um deleite pela capacidade de sustentar os paralelos, por sua vez, utilizados como provas consistentes de que sua hipótese inicial está correta. Porém, sempre puxando o tom à beleza da inspiração. Ainda que claramente queira mostra-se correto ao correlacionar David Lynch e O Mágico de Oz, Alexandre O. Philippe também está preocupado em sinalizar como esse processo de utilização consciente e/ou inconsciente das histórias e das imagens que nos marcam é uma das virtudes do cinema. Para isso, ele traz como narradores dos seis capítulos do documentário nomes conhecidos, tais como Rodney Ascher, Justin Benson, Karyn Kusama, Aaron Moorhead, Amy Nicholson e John Waters, assim criando uma experiência que tem um quê de colaborativa. Waters, por exemplo, fala em sua parte tanto do assunto principal quanto da própria relação com a produção assinada por Victor Fleming. Aliás, em momentos pontuais, o longa fica a ponto de perder de vista o seu foco principal e se transformar numa ode ao filme que tornou Judy Garland uma estrela incontornável no panteão hollywoodiano. E se há uma boa ideia subaproveitada ao longo dessa teia habilmente tecida é a incorporação da tragédia pessoal de Garland nos interesses de David Lynch por um imaginário de Hollywood que cambaleia entre o brilho incomparável das estrelas e o lado obscuro dessa fábrica de sonhos em película.

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Lynch/Oz é um filme que provavelmente será melhor degustado por quem possuir interesse prévio pela obra de David Lynch. A consistência das simetrias com O Mágico de Oz vai da reiteração do óbvio (Coração Selvagem, 1990), passando por associações quase vagas/forçadas (O Homem Elefante, 1980), chegando a proposições instigantes (Cidade dos Sonhos, 2001). De toda forma, existe um claro desejo de confirmar a tese inicial de que David Lynch talvez tenha sido atravessado estruturalmente por O Mágico de Oz. Os personagens transitando entre realidades paralelas, o truque escondido logo depois da cortina, a predileção por figuras dublando canções, a adesão quase infantil a uma aventura excitante, os duplos, os ventos reveladores, as mulheres em perigo, etc. Muitos indícios são trazidos à tona para garantir que a hipótese do documentário não possa ser facilmente refutada. O saldo é a produção fornecendo ótimos subsídios para (re)pensar a obra de um dos mais enigmáticos cineastas do cinema moderno norte-americano, o cultor dos subúrbios superficialmente pacatos que possuem subterrâneos aterrorizantes; o tomador do cinema como o tornado do filme de Victor Fleming que nos transporta a aventuras espetaculares; o homem que faz da Sétima Arte um campo de mergulho vertiginoso na subjetividade, não de obsessão pela objetividade. E quanto à relação O O Mágico de Oz, o documentário o coloca no pedestal reservado aos mais influentes filmes de todos os tempos.

Filme visto no Festival do Rio em outubro de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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