Crítica


7

Leitores


3 votos 8

Onde Assistir

Sinopse

Uma mãe acompanha a transição de gênero do filho adolescente. Um documentário autobiográfico sobre o processo de outrem em busca de sua identidade, que afeta essa mãe de formas diversas.

Crítica

Diante do processo de transição de gênero de sua primogênita, a cineasta Coraci Ruiz se prontificou a fazer um filme-diálogo. Essa conversa ocorre em dois níveis. O primeiro, mais epidérmico, se dá nas interlocuções com o menino trans que passa a se chamar André e com a mãe dela, na juventude signatária do alternativo. O segundo, porém, não menos intenso, é consigo mesma, numa jornada de revelação íntima de percepções sobre algo que não se encaixa confortavelmente até em sua concepção progressista. No fim das contas, Limiar se trata de um documentário a respeito de dificuldades geracionais, de como, independentemente da predisposição por encarar a vida com menos dogmas, ninguém talvez esteja completamente preparado às mudanças impostas por rompimentos de barreiras. Essa natureza fica clara na forma como o filme habilmente entrecruza as demonstrações de vanguardismo da senhora que confessa suas impossibilidades diante, por exemplo, da redesignação física de gênero, isso após relembrar-se experimentando outras formas de ver/ser.

Limiar é fruto de uma perspectiva única, não estruturada para evadir os limites do espaço de fala da cineasta, sinalizando constantemente a partir de quais ângulos enxerga a transição de André. Evitando ruídos, Coraci – cujo nome, ironicamente, poderia perfeitamente servir a ambos os gêneros – mantém-se em tom confessional, demorando a aparecer defronte a câmera, senão em resgates imagéticos do passado, talvez em virtude da consciência do poder desproporcional sobre ela. A vontade de equilibrar um jogo naturalmente desigual também aparece na mixagem de som, no jeito como mantém sua voz de perguntadora num volume abaixo do conferido à fala dos entrevistados/familiares. Essa equalização entre as manifestações de pesos e dimensões bem distintos faz bem ao conjunto, evitando que qualquer de suas instâncias asfixiem as demais. É um trabalho bonito, embora às vezes acabe redundante por conta das repetições de apontamentos e constatações parecidas. No entanto, o resultado transpira sensibilidade e um desejo genuíno de manifestar empatia.

Há momentos luminares em Limiar, como quando sobressai a frustração de André ao ver a mãe lhe confidenciando incapacidades a serem vencidas ou na captura da felicidade do menino ao ouvir sobre a bissexualidade da genitora. São instantes de conexões e desconexões bastante sintomáticas dessa relação não vista por um prisma reducionista. O foco não é direcionado a jornadas redentoras ou conciliadoras transformações repentinas de pensamento. Concomitantemente, Coraci Ruiz dá uma proporção orgânica à transição do filho, sem com isso deixar de externar chateações que, expostas de outra maneira, poderiam soar mesquinhas diante do turbilhão de sentimentos atravessando violentamente o adolescente. Ocupam tal lugar o luto pelo nome colocado em desuso e as crises frente as dúvidas quanto à resolutividade do filho empenhado em relativizar fronteiras em prol da liberdade, algo por ela defendido em outras esferas na juventude. Tudo isso está ali, pulsando num filme que abraça a irregularidade como parte de sua própria metodologia formal.

Dentro dessas investigações, a realizadora se permite ler a época em que André passa pelo transcurso de ressignificação. Novamente substanciando a observação das inevitáveis tensões geracionais, ela estabelece elos entre as manifestações públicas da mãe nos anos 1970, seus entusiasmos quanto a ir às ruas para reivindicar justiça social e liberdade nos anos 1990/2000 e a vez em que foi levada por André à declaração pública de reafirmação dos direitos da comunidade LGBTQIA+. O grande mérito de Linear é comportar tanta coisa em pouco mais de 70 minutos, ocasionalmente soando reiterativo, mas passando longe de ser apressado ou superficial. Especialmente na nossa contemporaneidade afeita a polarizações, fruto de simplificações nocivas, o documentário é calcado numa intimidade escrutinada a partir da noção das ambivalências, sem cravar certos, errados, mocinhos e bandidos, mas demonstrando heterogeneamente a abertura a um modo dialógico de compreender esse mundo em constante mutação, sem imposições, privilegiando sempre o querer.

Filme visto online no Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2020.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *