Crítica


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Sinopse

Na Patagônia, Julián e sua esposa Clara retornam à sua cidade natal para cuidar do pai moribundo. Os problemas do pai passam para Julián, que confronta ex-funcionários por um pedaço de terra, evidenciando egoísmo, obsessão e vingança.

Crítica

Arrastado de volta ao interior argentino onde nasceu, por conta da convalescença do seu pai, Julian (Andrés Ciavaglia) chega à chácara da família com a sua esposa, Clara (Mariana Anghileri). No entanto, o cineasta Juan Agustin Flores não enxerga esse instante de retorno como algo dramaticamente importante. Involuntariamente, ele cria um momento despersonalizado e frio com o casal entrando na propriedade, explorando os cômodos da residência e conversando acerca do universo dele. Afinal de contas, ela é uma completa forasteira. A entrada protocolar nesse universo camponês que, mais tarde, manifestará uma ameaça ao protagonista é um indício do tom gélido que Las Fieras mantém durante os seus pouco mais de 70 minutos. O grande conflito da trama nem diz respeito ao patriarca acamado, cuja saúde debilitada obriga o filho único a voltar momentaneamente para um lugar com o qual provavelmente não se identifica mais – levando em consideração que Julian nem cogita em morar lá. O principal problema é a insatisfação de Olmo (Jorge Sesán), o caseiro da propriedade, desalojado exatamente para o herdeiro e a estranha terem onde ficar. O homem está tenso porque pode perder o lugar onde mora caso o dono morra e o filho reivindique a posse a que legalmente tem direito. Então, tudo está armado para Julian e Clara serem aterrorizados pelo sujeito que pretende se manter por ali.

As intenções de Juan Agustin Flores são claras, especialmente no sentido de colocar personagens desterritorializados em choque. O casal que veio de fora não pretende ficar, mas mesmo assim é uma ameaça ao caseiro obrigado a pedir guarida ao amigo violento. Ninguém está totalmente feliz com aquela situação, mas o cineasta não elabora esse desconforto generalizado que poderia ser a base da tensão e, quem sabe, dos momentos de horror. Tudo é muito burocrático nessa trama em que as animosidades são cozinhadas em fogo lentíssimo, como se para gerar uma atmosfera opressora fosse preciso apenas colocar na boca dos personagens meia dúzias de palavras cortantes e moldar situações mornas de embate. Em nenhum momento Juan investe na dificuldade pessoal de Julian ao voltar para casa a fim de testemunhar o que podem ser os últimos dias de seu pai. Aliás, pela pouca (e repetitiva) interação que os dois têm fica difícil até de dimensionar o nível de intimidade que baliza essa relação entre pai e filho. As cenas do protagonista à beira da cama do homem fragilizado são desprovidas de sentimento, vide as falas sem densidade emocional e com pouco volume psicológico. Não dá para extrair muito dessas ocasiões em que simplesmente temos um jovem velando o descanso forçado de um idoso frágil. Enquanto isso, Clara vira quase em objeto de decoração, tamanha é a sua falta de subjetividade.

O cinema é pródigo em histórias de pessoas urbanas aterrorizadas num interior obscurantista e agressivo. Ao que parece, o grande modelo para Las Fieras é Sob o Domínio do Medo (1971), do cineasta norte-americano Sam Peckinpah, um dos grandes artífices da violência gráfica no cinema norte-americano dos anos 1970. Nesse filmaço que provavelmente serviu como base ao longa argentino (a julgar também pela imagem icônica do protagonista de espingarda em punho), Dustin Hoffman interpreta um completo peixe fora d’água no vilarejo onde sua esposa nasceu. Acuado pela agressividade local, o estrangeiro pacato é obrigado a pegar em armas para defender honra e propriedade. Porém, se compararmos as produções, a argentina falha em todos os quesitos brilhantemente atendidos pela norte-americana. A começar pela construção da atmosfera asfixiante, passando pela profundidade psicológica dos personagens, chegando ao crescendo de brutalidade que culmina no banho de sangue. Juan Agustin Flores até tenta seguir esses passos, mas acaba atolando protagonistas e coadjuvantes numa morosidade improdutiva, não fermentando a selvageria como bem poderia, criando cenas desnecessárias que sabotam a tensão quando ela parecia escalar progressivamente. Se não era para tensionar o passado e o presdente de Julian no lugar, para que serve a sequência do encontro com o amigo de infância?

Outro grande problema nesse drama anêmico e com pouca voltagem dramática é a figura do vilão. Olmo é construído de modo preguiçoso como alguém entre a indignação e a passividade. Tirado do território no qual morou durante anos por um moleque sem a mesma conexão com aquela terra, ele é um sujeito tão sem iniciativa que precisa da ajuda de um amigo, este sim uma personificação da brutalidade, para fazer escalonar a violência. Com seu corpanzil e a cara de poucos amigos, Rissi (Carlos Portaluppi) é aquele que exterioriza a agressividade, aparentemente desejando que as coisas cheguem rapidamente a um desfecho que o permita extravasar. Mas, toda vez que Rissi manifesta essa energia bruta incontida, Olmo fica ainda mais eclipsado como alguém cuja indignação pode levar a um desfecho catastrófico. Juan Agustin Flores tenta inserir elementos para tornar mais notável essa sensação de perigo, mas falha no desenho da atmosfera que almeja ser vista como opressora para os forasteiros. Permitindo que a trama rapidamente se acomode dentro da abordagem morna e sem rompantes que a tirem ocasionalmente de um marasmo previsível, o realizador se contenta em nos apresentar a sua premissa instigante, percorrer de modo mais ou menos conhecido os caminhos de um conflito cinematograficamente comum, mas sem a perícia para transformar cada gesto no indício da propensão geral à violência.

Filme visto no 2º Bonito CineSur em julho de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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