Crítica

A dramatização da factual relutância da cartunista e chargista Laerte Coutinho em começar a documentar a própria vida não é um dado gratuito em Laerte-se. Ela dá conta de um traço característico e insuspeito da personalidade dessa artista consagrada que assumiu a transexualidade aos 57 anos, algo explorado frequentemente pelo longa-metragem dirigido por Eliane Brum e Lygia Barbosa da Silva. A despeito da coragem de expor-se, de posar nua, de surgir como uma voz forte contra a opressora classificação de gênero apenas de acordo com a biologia, ela demonstra regularmente uma insegurança determinante que, muitas vezes, a emudece ou até mesmo a faz colocar em xeque seu incensado trabalho, tido como um dos mais importantes do país. Inegavelmente, Laerte já era conhecida antes de ressurgir mulher, mas a mudança deu-lhe outra proporção social, dimensão que o filme aborda de maneira muito orgânica enquanto se detém mais na instância privada dessa alguém que se redescobre.

O tom de Laerte-se, no mais das vezes, é quase informal. Eliane Brum, uma das diretoras, além de jornalista de renome, consegue achegar-se da personagem que, então, vai desvelando paulatinamente sua intimidade. O cenário predominante é a casa de Laerte, seu espaço de convivência com os gatos (que constantemente reivindicam atenção por meio de miados), com os materiais de criação e com a evidente reconfiguração do espaço, literalmente em obras. A alteração da arquitetura reflete, num plano alegórico, o árduo processo enfrentado por Laerte para entender e contextualizar sua redefinição de identidade de gênero, algo que acenava timidamente na juventude, e que agora, já na maturidade, de fato se concretiza. A protagonista é registrada em momentos prosaicos, experimentando vestidos novos, lidando com toda sorte de elementos e rituais mais comumente associados à feminilidade, como que para denotar esse processo de adequação externa aos ditames do desejo e dos anseios de ser.

Eliane Brum e Lygia Barbosa da Silva estabelecem, assim, uma proximidade cativante com Laerte, nos colocando rentes às suas mais complexas sensações oriundas do encadeamento de novidades que dizem respeito, inclusive, à aceitação familiar. Valendo-se de vídeos caseiros que mostram a meninice da artista em meio à afetuosidade dos pais, às brincadeiras nos cenários elegidos para as férias em conjunto, por exemplo, as diretoras constituem esse clima carinhoso. Laerte coloca em diversas perspectivas suas escolhas, mencionando desde as implicações sentimentais da transexualidade ao âmbito da receptividade alheia. Laerte-se toca, também, a esfera política, aliás, um dos principais alvos das tirinhas ferinas e bem-humoradas de Laerte. A animação de algumas deflagra o elo entre a artista e sua obra, por meio da qual constantemente ela expressa o turbilhão de impressões e reações, enfim, das consequências da adequação a si mesma, de assumir-se integralmente como mulher.

Além de fazer um inventário caloroso dessa individualidade tão emblemática, já que estamos falando de uma pessoa pública, cujas atitudes tendem a ressoar ainda mais socialmente, Laerte-se captura a essência de um caráter paradoxal. Por um lado, Laerte possui inclinação ao resguarde, ao recato, a não chamar demasiadamente atenção para si – “não sou reconhecida pela audácia”, diz ela lá pelas tantas –, mas, por outro, sobressai sua coragem de expor-se, fazendo do próprio corpo um instrumento político (obviamente não partidário). Intimista, o documentário não se prende a cronologias, sabiamente tampouco almejando esgotar uma trajetória inesgotável, dada a sua multiplicidade. A arte da protagonista é utilizada como ingrediente essencial, seja narrativamente, a fim de pontuar os temas abordados, ou simbolicamente, para nos ajudar a entender melhor a singularidade de um olhar curioso e, portanto, cambiante, que oscila e se descobre de acordo com as novidades, ao sabor do vento.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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