Crítica


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Sinopse

Nélie Laborde teve uma infância miserável, mas conseguiu sobreviver sozinhas nas ruas e se tornar enfermeira. Durante a Primeira Guerra Mundial, cuida de um albergue para pessoas de passagem. Ela acolhe Rose Juillet, jovem a caminho da casa de uma senhora aristocrata que prometeu recebê-la, mesmo sem conhecer sua identidade, em respeito ao falecido pai da garota. Quando Rose morre num bombardeio, Nélie tem a ideia de adotar a identidade da outra e buscar a vida de luxo.

Crítica

O drama começa em alta velocidade. Nélie Laborde (Lyna Khoudri) leva uma vida miserável, é obrigada a se prostituir para comer, dorme nas ruas, é resgatada – tudo isso em poucos minutos. O projeto reflete a síndrome das adaptações literárias incapazes de suprimir passagens em nome do ritmo narrativo, ou de incorporar estes elementos sem recorrer à descrição linear e sequencial. De qualquer modo, o roteiro se apressa para chegar ao ponto em que a protagonista ocupa a função de enfermeira num albergue durante a Primeira Guerra Mundial. Ela realmente fez estudos na área? Pouco importa. A chegada de Rose Juillet (Maud Wyler) no local, conversando com a heroína, deixa claro que a hóspede possuirá grande importância na trama, afinal, a enfermeira não estabelece contato com mais ninguém. O filme se desenvolve através de uma estrutura funcional e acessória: se alguma figura entra em cena e possui diálogos, ele certamente será fundamental dali em diante. Rose explica que está a caminho da mansão de uma senhora rica, onde deve ser acolhida em respeito ao falecido pai. Na cena seguinte – adivinha? –, a viajante morre num bombardeio mal filmado e explicado. Resta à protagonista usurpar a identidade alheia e buscar a vida de riquezas prometida à falecida.

A premissa possui forte potencial. A farsa da troca de identidades carrega evidente dilema social: a jovem pobre precisa se passar pela rica, fazendo referência a uma infância desconhecida e correndo o risco de ser descoberta a qualquer instante. No entanto, para isso, seria essencial que a diretora Aurélia Georges explorasse a psicologia de Nélie e seu conflito moral ao apostar na troca. A heroína teria sido astuciosa desde sempre? O que o gesto diz sobre seu caráter? Ela sofre por explorar a boa vontade de outras pessoas, hesita em prosseguir com os planos? Nada disso. As ações se sucedem maquinalmente, de um ponto de vista externo e desafetado. A tensão está ausente: a nova protegida da Senhora Lengwill (Sabine Azéma) corre pouco risco de ser desmascarada, a falta de conhecimentos sobre o passado nunca a trai. Estranhamente, a origem árabe da garota (a atriz nasceu na Argélia) não produz ruídos em meio à aristocracia francesa. O caminho natural diante de um conflito tão potente seria colocar o ponto de vista junto à protagonista, enxergando a vida pelos olhos dela, temendo dar algum passo em falso, arquitetando a sequência do plano. Ora, o espectador observa a protagonista de fora, presenciando unicamente àquilo que ela verbaliza ou efetua fisicamente (o roubo da carta, a falsificação do documento). Seus sentimentos permanecem inacessíveis.

Se a abordagem da direção enfraquece o suspense, a atriz principal tampouco contribui à tarefa. Lyna Khoudri representou uma verdadeira revelação em filmes como Papicha (2019) e Edifício Gagarine (2020), onde transbordava de espontaneidade e vigor. Aqui, sob a direção solene e rígida de Georges, perde a força que lhe parecia inata. A protagonista sustenta o corpo invariavelmente ereto, a mão educadamente posada contra o ventre, uma expressão desafetada ao limite da catatonia. Era justamente no rosto que se esperava encontrar a dúvida, a felicidade dos planos bem-sucedidos, o medo da descoberta, a raiva contra sua rival. Cabia à diretora e à protagonista desenharem uma personagem complexa, com notável senso de oportunidade, mesmo que distante da caracterização depreciativa de uma mulher de caráter duvidoso. Ora, Nélie se torna apática, desprovida de desejos e pulsões. Por vezes, o filme insiste em enxergar nela uma garotinha frágil e ingênua (“Você me amaria se eu fosse filha de lavadeira?”, pergunta a Lengwill), em outros instantes, sugere uma estrategista de habilidades duvidosas (ela revela seus conhecimentos secretos de enfermeira). O ponto de partida soa duvidoso em si: que profissional da saúde não saberia se uma pessoa está viva ou morta, deixando de checar sinais vitais antes de declarar uma morte?

Diante da questionável heroína, pelo menos Sabine Azéma demonstra sua tradicional desenvoltura para a fronteira entre drama e comédia. Interpretando uma senhora conservadora, ela amplia os gestos com as mãos e os olhares ternos à nova moradora. Maud Wyler transborda de indignação em cada fala, aproximando-se da loucura. É engraçado que o filme encontre nas duas coadjuvantes toda a malícia e complexidade moral que não consegue enxergar em Nélie. Talvez a narrativa se tornasse mais potente caso fosse contada pelo olhar de uma das duas mulheres: aquela que recebe a farsante em sua casa, e a outra cuja identidade é roubada. De qualquer modo, falta a Secret Name (2021) uma condução ambiciosa, marcada por contradições, ambiguidades, sugestões e prenúncios. Lady Macbeth (2016), por exemplo, investia de maneira corajosa na personalidade perversa de sua protagonista, e dentro do cinema francês, Ao Lado da Pianista (2006) explorava a vingança doentia de uma mulher contra a algoz que lhe retirou o espaço social. Um diretor como François Ozon se deliciaria com o jogo de duplicidades e o erotismo inerente à situação. No entanto, Georges despreza o impacto das ameaças sobre a enfermeira e o peso da passagem do tempo na confiança despertada pela falsária. A montagem de Martial Solomon se mostra particularmente infeliz na tarefa de explorar durações e retirar a impressão de mero resumo do livro original.

Atenção: spoilers a seguir!
O encadeamento melhora consideravelmente quando a verdadeira Rose aparece na mansão para reivindicar o seu lugar. Neste ponto, o confronto entre a rigidez de Khouri e a histeria de Wyler produz bons resultados cênicos. É uma pena que a conclusão recorra ao questionável deus ex machina, resolvendo magicamente os problemas da protagonista e permitindo um retorno à vida de princesa. Depois de apostar no confronto entre três mulheres fortes, o filme termina por simplificá-las ao limite da caricatura. Como este desfecho pôde passar pelas mãos de produtores e criadores sem despertar dúvidas quanto à sua verossimilhança? Embora Sabine Azéma se esforce, é difícil comprar o otimismo banal da última cena. La Place d’une Autre, no original, se abre como um drama de época, ameaça enveredar pelo suspense e termina abraçando o conto de fadas. Compreende-se a intenção da autora em explorar a emancipação feminina num contexto de guerra, motivando a subversão de princípios básicos em nome da sobrevivência. Entretanto, falha em desenvolver os antagonistas masculinos, em aprofundar as pulsões de vida e morte de Nélie/Rose, e em representar, de maneira explícita ou simbólica, os horrores da guerra. Os criadores conseguiram o feito mais difícil de todos: transformaram um empolgante thriller num drama antiquado e impessoal.

Filme visto online no Festival Internacional de Locarno, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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