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Sinopse

Recém-chegado a uma pacata e congelante cidade na Escandinávia, um carteiro deve entregar sua encomenda. Porém, uma vez no local, sua missão é desviada quando passa a travar uma amizade com um fabricante de brinquedos que está há muito tempo afastado do ofício.

Crítica

O lançamento de filmes de Natal no fim do ano, e a reprodução da cultura natalina de modo geral, cumprem funções sociais e econômicas bem precisas. A concepção ocidental do feriado se traduz numa trégua generalizada, quando as pessoas (inclusive aquelas que se odeiam) se abraçam, agradecem pelo bom ano que tiveram ou prometem uma transformação no ano seguinte. Reforça-se a vocação cristã da família tradicional, o afeto compreendido enquanto consumo (quem ama, compra presentes) além de um contrato tácito segundo o qual as pessoas deveriam se comportar de modo mais clemente do que de costume. Trata-se de algo fundamentalmente hipócrita, uma questão de mise en scène familiar – mais qual tradição não constitui em si mesmo uma performance, certo? Temos, como toda sociedade, nossos próprios rituais.

Neste sentido, é muito interessante assistir à animação espanhola Klaus, da Netflix. Por trás da aparência convencional – nada mais oportuno e oportunista do que uma história sobre o Papai Noel em dezembro – existe um programa sutil e deliciosamente subversivo. Primeiro, o diretor Sergio Pablos aposta numa animação feita à mão, ainda que finalizada por computador, o que cria uma estética ao mesmo tempo tradicional e adaptada à contemporaneidade. Segundo, retira-se da lenda do Papai Noel a sua magia: através de uma desmistificação fictícia, o roteiro cria sua própria lenda, na qual Klaus nada mais é do que um homem solitário e comum. As renas, o trenó, as roupas vermelhas, os presentes e demais esses elementos se resumem a acidentes de percurso criados por ele, ou pelo desejo de ficção das crianças locais. Curiosamente, o segredo mágico por trás desta produção constitui a ausência de magia. O espectador vê brinquedos sendo construídos com madeira, veículos movidos a roda e tração, além da dinâmica complexa de entrega de presentes. Estamos num território puramente mecânico.

Terceiro, o filme retira do Natal sua vertente capitalista. Ninguém compra os presentes: eles são feitos diretamente por Klaus, com madeira simples, a partir dos elementos à disposição. Deste modo, não há competição entre as crianças, nem uma discrepância entre o valor dos brinquedos recebidos. A moedinha entregue pelos pequenos ao carteiro Jesper é abandonada enquanto elemento de troca: basta escrever a carta ao fabricante e o presente é garantido. Os bonecos e carrinhos se tornam menos uma recompensa consumista ao bom comportamento (ou seja, uma falsa meritocracia calcada no poder financeiro) do que um gesto altruísta e democratizante: logo, dois clãs inimigos se unem porque as crianças, repletas de objetos em suas mãos, desejam brincar juntas. Para o pavor destes adultos odiosos, os brinquedos representam também a arte, a convivência com a diferença e a possibilidade de questionar regras preestabelecidas. A tradição, defendida pelos clãs opostos, significa “séculos de glorioso ódio transmitido de geração a geração”, explica a matriarca. O filme encontra espaço para criticar o automatismo das tradições enquanto coincide os presentes com a ideia revolucionária da arte e da cultura.

Quarto, e talvez mais ousado, seja a ideia de um Natal laico, ou seja, um feriado sem qualquer menção a Deus, a Jesus, a Reis Magos. O altruísmo que move Klaus e que gradativamente contamina o burguês Jesper não possui qualquer vínculo com textos sagrados, apenas a crença numa moral coletiva, criada a partir do confronto com uma cidade destituída de valores comunitários. A propósito, a apresentação da sombria Smeeremburg remete às produções de terror, com ótimo uso de luzes e sons, além da piada impagável da garota assustadora com uma cenoura. A possibilidade de desvincular a noção de bem e mal da Igreja, e da crença religiosa de modo geral, faz de Klaus um filme bastante corajoso. Ainda que nunca recuse a abertura ao transcendental (vide as folhas ao vento, representando a esposa morta), o projeto mantém sua crença humanista erguida apenas nos valores da arte, cultura (os brinquedos) e educação (as cartas, a escola). Os vilões, no caso, tampouco são figuras inerentemente perversas, apenas sujeitos embrutecidos pelo conservadorismo.

Além de tantas qualidades narrativas, Klaus é construído a partir de imagens belíssimas, tão simples quanto funcionais. A apresentação de uma cidade cinzenta, que adquire cor gradativamente, e o delicado uso dos espaços abertos impressionam, ao passo que o “travestimento” dos personagens (o papel das roupas de Klaus, o chapéu de Jesper, a roupa de Alva) serve para brincar com a noção de aparência versus essência, ou de função social versus papel de gênero. Em outras palavras, importa mais o fato de serem carteiros, professores e construtores de brinquedos do que homens e mulheres, maridos e esposas. A estética se adapta muito bem à fábula enxuta, muito bem conduzida por direção e roteiro, e harmonizada através da produção. Nas vozes originais, J.K. Simmons e Jason Schwartzman criam uma amizade do acaso, ligada inicialmente por vínculos de conveniência, e apenas com o tempo se tornando uma afinidade real. Enquanto as animações infantis e natalinas convidam seu público a acreditar que “tudo é possível” graças à fantasia, esta convida os espectadores a observarem o que existe por trás da magia, das regras sociais e das convenções, de modo a descobrir uma essência humanista à disposição de todos. Nada mau.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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