Crítica


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Sinopse

Separado de sua família judia por conta do nazismo, o pastor alemão Kaleb é adotado por um soldado do serviço secreto que o treina para controlar prisioneiros em campos de concentração. Um reencontro inesperado acontece.

Crítica

A combinação de um tema histórico sensível (o Holocausto) com o sofrimento de crianças e de animais domésticos constitui um barril de pólvora para o cinema melodramático. Dentro do gênero “familiar”, estes temas e personagens servem como ponte fácil de identificação: como não torcer pelo garotinho judeu maltratado em campos de concentração, além de seu cachorro, que atravessa a cidade em busca do dono? O garoto e o animal têm em comum a percepção de pureza e inocência: eles não compreendem o mundo adulto, e se chocam ao descobrirem as atrocidades de que os humanos são capazes. O aprendizado ocorre na esfera dos sentimentos: o pequeno Joshua (August Maturo) e o cão Kaleb se tornam representações da bondade, resistindo o máximo que podem ao mundo de maldades. Visando um público amplo, o discurso resume o conflito ao embate maniqueísta. Não se fala sobre as origens do pensamento nazista, a ascensão de Adolf Hitler, ou o que realmente acontecia aos judeus dentro dos campos de concentração. O espectador não se confronta ao extermínio porque Joshua não o vê, e nosso olhar está condicionado à compreensão infantil. O período fundamental à análise histórica é despido de sua conotação evidentemente política.

Talvez a maior ousadia discursiva deste projeto avesso a polêmicas seja a decisão de comparar os protagonistas. O cão Kaleb é considerado judeu, por ter nascido entre uma família judia. Em seguida, recebe a classificação de “inferior”, por não ter uma “raça pura”. Ele é expulso de casa, jogado às ruas, preso em jaulas, maltratado. O cachorro enfrenta a fome e o medo enquanto luta para reencontrar a família. Joshua efetua uma trajetória equivalente, e a montagem faz questão de compará-los. Ao presumir que nossa identificação com o cãozinho fiel e inteligente seria mais linear do que com outro ser humano, a diretora Lynn Roth faz do animal a metáfora perfeita da identidade judaica. Para um povo tantas vezes comparado a animais asquerosos pelo pensamento nazista, a metáfora poderia resultar problemática, no entanto o filme faz questão de enxergar o cão apenas por seus valores e virtudes. Ou seja, ele representaria os judeus não pelas características irracionais, e sim pelo amor, compaixão e pela condição de vítima. Felizmente, Kaleb não é um cão falante tão comum ao cinema, nem um bicho excessivamente humanizado: ele se move instintivamente, sem ganhar muitos close-ups sugerindo alegria ou tristeza. Apesar de alguns planos subjetivos, com a câmera próxima ao solo representando o olhar do pastor alemão, ele não determina os rumos da história, apenas reage aos conflitos ao redor.

Enquanto o cachorro é poupado do melodrama, a cineasta encarrega o ator mirim de extrair lágrimas do público. August Maturo chora em diversas ocasiões. Quando tem seu cabelo cortado nos campos, por exemplo, a trilha sonora melódica se acentua, enquanto o menino soluça e a câmera efetua um zoom em seu rosto. O garoto cumpre bem algumas cenas, embora sua emoção soe artificial em outros momentos. O problema surge menos do talento do garoto do que da chantagem emocional provocada pela orquestra onipresente, além da vontade de se aproximar do rosto que chora, da mão suja roubando comida dos animais, da frase de efeito disparada por um personagem sob a mira das armas nazistas. O garoto tem o rosto excessivamente encardido pela direção de arte, enquanto a maquiagem aprofunda a pele pálida, as olheiras, a impressão de cansaço. Há certo descaso com o espectador cada vez que a direção duvida de sua capacidade em compreender uma mensagem tão simples quanto a tristeza, a fome, o desespero, precisando sublinhá-la ao limite da artificialidade.

Kaleb: O Cão Herói (2019) relembra a arte pedagógica de séculos atrás, quando se estimava que o teatro ou a literatura poderiam expurgar sentimentos através da tragédia, tornando as pessoas melhores pelo contato com a emoção. Neste pensamento de origem aristotélica, o choro seria mais nobre do que o riso. A noção de distanciamento crítico viria séculos depois, enquanto a psicologia cognitiva viria a investigar a relação de empatia, a projeção e a suspensão da descrença diante de ficções. Ora, o filme infantil converte o Holocausto em pano de fundo, lembrando que houve um período muito triste da História onde pessoas eram perseguidas por algum motivo inexplicável. Obviamente, não se espera que um drama familiar exponha cadáveres e se renda ao prazer da violência. No entanto, há maneiras lúdicas de analisar os motivos que conduziram a este período histórico – vide o recente Jojo Rabbit (2019), que também revisita o nazismo pelo olhar das crianças. Em outras palavras, teria sido mais produtiva a representação do nazismo por um ponto de vista reflexivo, ao invés de moral. Quando se sugere a importância de “fazer o bem” em meio a um evento tão fortemente conotado, esvazia-se o nazismo dos elementos que fizeram dele uma ferida histórica irreparável. O esforço em assepsiar o tema se revela contraproducente.

Além disso, a montagem distribui de maneira desequilibrada os conflitos: após um início acelerado, no qual o pensamento nazista se instala com uma rapidez espantosa no cotidiano do menino, o segundo terço estica a trama, deslocando o foco para um general nazista gentil e para as brigas do cão com outros animais de rua. Cada vez que se separa da família original, ou mesmo dos judeus em geral, o filme perde sua potência. O terço final, quando cão e menino se reencontram, culmina em quinze minutos finais atribulados, justapondo três grandes reviravoltas com cenários e personagens diferentes. A luta iugoslava e a perda de Kaleb na floresta são mencionados sem que o roteiro tenha tempo real de desenvolver estes temas. Resta a impressão de que os criadores se autoimpuseram a duração de 90 minutos, apropriada às sessões familiares, eliminando trechos até reduzir a narrativa ao mínimo coeficiente necessário. Em termos de linguagem, quando não se dedica ao impacto emocional, Roth trabalha com imagens acadêmicas de cor bege-acinzentado. A fuga do campo de concentração, único momento ambicioso em termos de construção, se revela caótico. Por fim, o drama retrata a resiliência do povo judeu por meio da união entre o menino e o seu cão. Na ficção, pelo menos, a boa vontade e o amor bastam para a sobrevivência de um povo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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