Crítica


8

Leitores


21 votos 7.8

Onde Assistir

Sinopse

Os policiais Brett e Anthony têm uma carreira respeitada dentro da corporação, até chegar à imprensa um vídeo de ambos abusando da força durante a detenção de um traficante de drogas. Ambos são suspensos, no entanto, precisam de dinheiro urgentemente: a esposa de Brett sofre com problemas de saúde, e Anthony está preparando o casamento com a namorada. Eles decidem investir num plano criminoso, roubando o dinheiro conquistado por ladrões num assalto.

Crítica

Justiça Brutal (2018) contém todos os elementos esperados de um frenético filme de ação: tiroteios, assaltos, perseguições, traições entre parceiros, execuções sangrentas, batidas policiais, ouro, drogas, metralhadoras, esconderijos, ocultação de provas, homens mascarados e esquemas de corrupção. No entanto, ele dificilmente poderia ser considerado um filme de ação, por lhe faltar a tensão e urgência que acompanham o gênero. O diretor S. Craig Zahler demonstra inesperado prazer em registrar todos estes momentos como se estivesse diante de um drama contemplativo. A câmera está parada, os planos são longos, há pouca trilha sonora. Quando os policiais Brett (Mel Gibson) e Anthony (Vince Vaughn) investigam um criminoso, passam dias diante do suposto apartamento do suspeito para compreender as movimentações dele. A câmera se acomoda no estacionamento, sem pressa, observando os dois homens comendo, dormindo, se provocando durante cerca de quinze minutos de narrativa. Quando um pano coberto de urina é jogado para fora do carro, o filme faz questão de demonstrar o objeto atingindo a beira da estrada por ângulos diferentes.

Outro aspecto contraria a lógica típica do cinema de ação: não existem mocinhos e bandidos. Brett e Anthony são sujeitos racistas, truculentos, descritos como figuras pouco admiráveis desde a cena inicial. No entanto, a montagem logo salta para a figura de Henry (Tory Kittles), jovem recém-saído da prisão cujo caminho se cruza aquele dos policiais apenas na segunda metade. Depois de 80 minutos, o roteiro decide introduzir uma personagem nova (Jennifer Carpenter), com conflitos independentes e cenas autônomas. Para a nossa surpresa, o filme evita adotar o ponto de vista de qualquer um deles: observamos o quiproquó envolvendo o roubo de um banco de um ponto de vista externo. A direção evita nos dizer para quem torcer, e contra quem, chegando ao cúmulo de apresentar um personagem de grande relevância para então eliminá-lo minutos depois. Esta estrutura disforme resulta num produto estranho dentro do circuito exibidor, do tipo que raríssimos produtores aceitariam viabilizar enquanto tal – sendo um filme “de ação” demais para o circuito de arte, e um filme “de arte” demais para o circuito comercial. O genérico título brasileiro se esforça em vender este produto enquanto pancadaria previsível, o que deve decepcionar muitos espectadores. Aliás, a noção de “justiça” está distante dos temas debatidos neste conto amoral. Às vezes, distribuidores despertam a impressão de não assistirem aos filmes que batizam.

Nomenclaturas à parte, S. Craig Zahler possui impressionante talento para a mise en scène, em parceria com o diretor de fotografia Benji Bakshi. Nota-se o cuidado na iluminação de cada cômodo, na escolha precisa das lentes e da profundidade de campo. A movimentação dos personagens pelos espaços, seja Henry dentro do apartamento da mãe, dois criminosos dentro de uma van ou Kelly retornando ao banco se traduz numa coreografia cerebral e elaborada. Seria tentador se aproximar dos rostos e acelerar as perseguições, porém o diretor desenha uma fuga onde as pessoas respeitam sinais de trânsito e param no farol vermelho, além de trocas de tiro onde veteranos erram a mira e se preocupam em recolher os cartuchos no chão. O crime perde seu caráter espetacular, empolgante, sendo convertido numa atividade rotineira – vide a grande quantidade de personagens parados, esperando a hora de agir. A formalidade dos golpes rompe com a impressão de espontaneidade, ao limite do cômico: as ameaças pré-gravadas pelos ladrões antes de chegarem ao banco e a paixão de Brett por estatísticas nos aproximam de um teatro do absurdo.

A propósito de Brett e estatísticas verbais, a linguagem se torna um elemento fundamental nesta obra – não apenas os diálogos, mas a linguagem em si. Cada personagem possui seu tique de fala, convertido em gag: Henry, ex-presidiário negro dotado de vocabulário exemplar, prefere falar como um gângster perto dos inimigos, “porque é mais fácil ser subestimado”. Em segundos, ele passa de um linguajar acadêmico à paródia do jovem do gueto. Anthony gosta de expressar surpresa com a expressão “Anchovas!”, e diversas frases entre os parceiros se repetem, como “Você está dentro?”. Elementos encontrados na rua (um gambá, um congelador) são mencionados de forma idêntica por personagens distintos, em tempos diferentes; enquanto nomes serão desconstruídos e parodiados (Anthony/Tony, Rosalinda, Friedrich/Freddy). Os personagens permanecem ocultos e anônimos, muitos deles cobertos por máscaras do início ao fim, ou imersos na escuridão – caso dos estrangeiros Lorentz e Freidrich, simbolizando a riqueza europeia contra a precariedade norte-americana. Através da fala e do intricado texto dos diálogos, ao limite do maneirismo, o cineasta propõe debates relevantes a respeito da convivência entre brancos, negros e latinos.

O aspecto racial desperta os momentos mais controversos do filme. Justiça Brutal se aproxima das representações depreciativas, dificultando a tarefa de determinar se o diretor está criticando, defendendo ou apenas mencionando estereótipos. Parte considerável dos 158 minutos de duração sugere que os racistas Brett e Anthony podem se redimir ao longo da jornada, demonstrando piedade pelas pessoas feridas no caminho. “Eu não sou racista!”, explica este último, enquanto Melanie (Laurie Holden), esposa do policial mais velho, se exclama: “Eu nunca pensei que eu fosse racista antes de me mudar para esse bairro”. Entretanto, a possível redenção dos homens brancos se dissipa. Uma cena de whiteface, quando ladrões negros se “fantasiam” de brancos para o assalto, desperta calafrios, mas a montagem sabe muito bem como se desfazer deste recurso. A possível aliança entre dois adversários, um branco e outro negro, sugere a reconciliação simplificada pela amizade, porém a narrativa sabota este caminho antes do final. O diretor gosta de brincar com expectativas para então subvertê-las. Existe um caráter exibicionista neste procedimento, ainda que Zahler de fato possua o talento à altura de suas grandes pretensões.

Ao fim, resta uma ambientação coesa, fruto de um trabalho primoroso de montagem e fotografia. Há pelo menos seis sequências excepcionais, a exemplo do acerto de contas do clímax, diante da névoa amarelada; do destino da funcionária Kelly e do encontro no restaurante, com uma decupagem e diálogos dignos de Quentin Tarantino. O projeto transparece maior prazer em manipular a estética do cinema do que reiterar os códigos da ação propriamente dita. Em paralelo, os atores cumprem com um misto de seriedade e leveza os papéis que poderiam se converter em caricaturas grosseiras. Mel Gibson encontra o tom ideal para o sujeito metódico, enquanto Vince Vaugh funciona enquanto belo contraponto ao parceiro, orquestrando diálogos com igual desenvoltura. Passando um terço da trama dentro de um carro, ambos constroem um jogo cênico excelente. Tory Kittles possui instantes tão fortes que nos fazem pensar: “Como eu não conhecia este ator antes?”, enquanto Fred Melamed, Udo Kier e Don Johnson ganham uma única cena para brilharem em composições divertidamente antinaturalistas. O resultado é um produto estranhíssimo, e por isso mesmo memorável em meio às padronizações do cinema comercial e do streaming.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *