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Sinopse

Júlia Porrada é uma figura popular de São Miguel do Gostoso. Após superar uma história de violência conjugal, ela se mantém sozinha com diversos filhos, enquanto conta com a colaboração dos habitantes locais. O apelido curioso vem de uma das "profissões" de seu passado: Júlia já foi paga para bater em pessoas.

Crítica

Numa das primeiras cenas do documentário, Júlia Porrada afirma ser a mulher mais famosa de São Miguel do Gostoso, algo que se traduz num misto de vaidade e ironia. É interessante que a porta de entrada para o retrato de uma mulher invisibilizada socialmente (vivendo em condição de extrema pobreza com os filhos) seja a autoconfiança e a exposição bastante franca com que a protagonista apresenta sua própria história. De certo modo, o diretor Igor Ribeiro permite que Júlia controle a narrativa, apresente os fatos que desejar, da maneira que quiser. O cinema se coloca em posição de humildade, oferecendo-se a dar voz para a protagonista.

O filme se beneficia da personalidade forte desta mulher, capaz de narrar suas tragédias com um distanciamento que beira o absurdo e, por consequência, o cômico. Por mais perturbador que seja escutar a plateia rindo do assassinato do ex-marido de Júlia, ela mesma narra o episódio com tamanho desapego que a oscilação entre o conteúdo trágico e a frieza da confissão provoca risadas. Devido à franqueza, ela jamais se vitimiza, preferindo valorizar os elementos que lhe são queridos, como a coleção de panelas de pressão e de bonecas. A relação entre o hábito de acumular objetos e o trauma sofrido com o marido violento não recebe uma explicação aprofundada, ainda que existam indícios da associação entre ambos. Diante de figuras excepcionais como Júlia, a direção corre o risco de rir da pessoa, mas consegue rir com ela: em nenhum momento seus trejeitos ou visão de mundo são ridicularizados no filme.

Em termos de estrutura, pode-se falar numa narrativa convencional, porém feliz ao evitar a linearidade do discurso – não se trata propriamente de uma biografia, e sim de um olhar cotidiano, com abertura ao acaso e muito bem executada tecnicamente. A dissociação de som e imagem, transformando Júlia em comentarista de suas cenas cotidianas, funciona graças a uma montagem bastante eficaz e uma fotografia muito competente (com destaque para a bela luz em interiores). Uma ou outra desigualdade de som talvez corresponda a uma falha na projeção, ao invés de uma deficiência do filme. Para um projeto realizado por estudantes de audiovisual – ainda que com a supervisão de profissionais experientes – o resultado é certamente notável.

Júlia Porrada se conclui como bela obra humanista, de porte adequado ao formato do curta-metragem (observa-se apenas Júlia, que ocupa convenientemente o título, sem qualquer outra palavra além de seu nome), e capaz de se colocar ao lado das figuras marginais. Embora não seja possível abolir a posição hierárquica entre diretor e personagem, o documentário chega o mais perto possível de se situar junto à protagonista, na posição de ouvinte atento. Para uma mulher de nome tão potente, talvez esta agressividade pudesse se refletir na estética, através de recursos mais ousados ou de eventuais ruídos na representação. Por outro lado, é possível que esta exigência seja mais pertinente a um curta-metragem comandado por profissionais, ao invés de aprendizes do audiovisual.

Filme visto na 6ª Mostra de Cinema de Gostoso, em novembro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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