Crítica


3

Leitores


10 votos 5

Onde Assistir

Sinopse

Numa cidade norte-americana, diversas adolescentes são atraídas pela Internet e capturadas por um predador sexual. Enquanto um policial reúne um time de especialistas para encontrar o culpado, outro homem utiliza uma técnica mais arriscada: treinar uma jovem para servir de isca até o pedófilo.

Crítica

Ao que tudo indica, esta produção foi concebida para se tornar um filme de grande porte, do tipo que lota cinemas e disputa os primeiros lugares no ranking das bilheterias internacionais. O elenco traz nomes importantes da indústria como Henry Cavill, Ben Kingsley, Stanley Tucci, Alexandra Daddario e Nathan Fillion. A trama sobre um predador sexual atacando garotinhas, deixando pais preocupados e cidadãos revoltados, poderia produzir fácil apelo emocional pela óbvia distinção entre o bem e o mal, os heróis e os vilões, os puros e os monstros. Alguns cenários grandiosos no gelo e porões sombrios sugerem a busca pela elegância e pelo “valor de produção”. O roteiro e a direção são efetuados pela mesma pessoa, David Raymond, o que impediria as brigas internas pelo controle da narrativa. No entanto, o resultado está distante da polidez esperada de um produto do tipo. Em diversos momentos, ele remete a Boneco de Neve (2017), outra iniciativa de grandes estúdios sabotada pelas sucessivas alterações de roteiro, montagem e finalização.

O início, no entanto, demonstra potencial. A apresentação deixa claro o conflito principal envolvendo o agressor, enquanto descobrimos duas abordagens distintas ao problema. O policial Marshall (Henry Cavill) representa o caminho oficial: ele efetua uma investigação, busca provas, recolhe indícios, enquanto esbraveja, dá socos na mesa, se irrita com a demora em prender o culpado. Já Cooper (Ben Kingsley) ilustra o caminho da vingança agressiva e perigosa, ao agir em segredo, treinando uma adolescente para servir de isca ao inimigo. Está lançada uma bela discussão ética e moral : é permitido agredir os agressores? A tortura é tolerável no caso de um pedófilo? Ele mereceria a pena de morte? No entanto, a possível reflexão sobre o justiçamento é prejudicada pela maneira como ambos caminhos, teoricamente contrários, se parecem. Tanto a justiça quanto a vingança são percebidas como armas de força, elaboradas por homens passionais, que se descontrolam, socam um suspeito, descumprem as leis. Os caminhos constitucionais e os anticonstitucionais se tornam vias equivalentes. O cineasta abandona a ferramenta da razão para propor uma corrida entre dois homens brutos: qual matará o monstro primeiro?

Aos poucos, a narrativa se perde vertiginosamente. A cada reviravolta, a busca policial se torna menos verossímil, a montagem demonstra mais dificuldade em articular tantas tramas paralelas (o suspeito sob custódia, a vida familiar de Marshall, o trauma no passado de Cooper, as matanças lá fora), algumas facilidades e outras impossibilidades são introduzidas à história. De repente, não se torna mais tão claro quais ações ocorrem simultaneamente, e quais se inscrevem numa linha temporal sucessiva. Certo personagem preso numa sala é visto fora dela, do outro lado da cidade. Mas como? A narrativa sugere que a filha de Marshall será uma provável vítima, porém aborta esse caminho. Apresenta-se então uma psicóloga que bate nos pacientes e grita com eles, uma hacker que descobre informações dificílimas em questão de segundos, um homem com óbvia deficiência intelectual, não reconhecido enquanto tal. Arquivos secretos guardados há décadas são encontrados na primeira caixa aberta, objetos preciosos não possuem valor algum mais tarde, um certo ritual de água e fogo irrompe sem contextualização, e também desaparece quando não convém mais à narrativa. As esparsas tentativas de alívio da tensão por meio do humor falham diante dos diálogos fracos. Para uma obra dotada de inacreditáveis 22 produtores executivos, 5 produtores e 5 coprodutores, resta a impressão de um Frankenstein mal costurado.

Esta indefinição se traduz num trabalho heterogêneo do elenco. Henry Cavill acentua a brutalidade dos gestos e da fala, ainda que a trama jamais justifique o aspecto casmurro. Brendan Fletcher exagera na dramaticidade como se buscasse o primeiro Oscar, enquanto Stanley Tucci efetua uma caricatura do sujeito conservador e violento. As mulheres são possíveis pares românticos, representando mães simbólicas (Alexandra Daddario) ou filhas simbólicas (Emma Tremblay), precisando obviamente ser salvas pelos homens corajosos quando o perigo se apresenta. Conflitos violentos numa floresta ou sobre uma fina camada de gelo talvez produzissem algum impacto caso não tivessem sido explorados tantas vezes pelos suspenses policiais, e caso a circunstâncias justificassem a presença dos personagens nestes cenários. O que teria atraído um elenco tão gabaritado a uma trama tão genérica? A história aparenta ter sofrido inúmeras modificações entre a concepção original e o produto final – jamais lançado comercialmente nos cinemas, vale dizer. Jogo Assassino (2018) constitui um dos casos em que o processo dos bastidores provavelmente traria uma leitura sintomática mais interessante do que o resultado observado em tela.

De resto, o filme condena a pedofilia apesar de permitir a tortura e a brutalidade policial. Ele busca equivaler o pedófilo à figura do deficiente mental, ambos destituídos de humanidade e próximos da bestialidade, o que tampouco resulta numa leitura aceitável do mundo. Nenhum personagem possui um desenvolvimento passado capaz de explicar suas atitudes no presente – sobretudo as figuras interpretadas por Ben Kingsley e Alexandra Daddario, que precisariam de mais atenção à vida familiar para tornar suas atitudes verossímeis. Por estes motivos, torna-se difícil torcer por eles, temer por suas vidas, ou mesmo se impressionar com a insana reviravolta final. A surpresa relegada ao último terço se instaura após articulações tão confusas da montagem que talvez não produza qualquer impacto de fato. David Raymond mirou num produto classe A, algo que David Fincher ou Denis Villeneuve executariam com facilidade. No entanto, ficou muito aquém da construção básica de tempo, espaço e desenvolvimento de personagens. Talvez o material bruto pudesse ser remontado, o roteiro pudesse ser repensado. Enfim, tarde demais. Nada é mais decepcionante do que um suspense policial incapaz de sustentar a tensão e a lógica narrativa.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
3
Lucas Salgado
3
MÉDIA
3

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *