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Sinopse

Um grupo de jovens guerreiros hiper-masculinos socorre um rapaz que ficou inconsciente após um acidente. Eles o levam para casa, onde Jessica, uma espécie de Joana d'Arc futurística, fornece carinho e proteção para a trupe. Apesar de viverem bem, esses órfãos estão sendo ameaçados e caçados por autoridades governamentais.

Crítica

O melhor elogio que se pode fazer a um filme como Jessica Forever é o fato de ser uma produção destemida. Os diretores Caroline Poggi e Jonathan Vinel apresentam uma obra ao mesmo tempo realista e fantástica, carinhosa e absurda, sem qualquer concessão ao “bom gosto” padrão, nem à compreensão do espectador médio. Os cineastas abraçam o kitsch numa viagem muito particular, que acredita não precisar se explicar a ninguém – gesto ao mesmo tempo radical, autoral e possivelmente arrogante, por limitar o escopo da comunicação. O filme poderia ser descrito por sua sinopse, mas talvez se insira melhor numa espécie de exercício de gêneros, sejam eles os gêneros cinematográficos ou as noções de homem, mulher e demais configurações identitárias.

Pelo aspecto geral, estamos diante de uma distopia, onde uma forte guerreira salva diversos “órfãos” adultos, que passa a tratar como filhos. O grupo formado pela mãe-líder e por uma dezena de combatentes se isola em casarões de condomínios privilegiados, esperando pelo próximo ataque. Não se sabe ao certo contra o que combatem (a ameaça surge na forma de drones virtuais, a mando de alguma força invisível), nem em que circunstâncias foram salvos. Não vemos Jessica (Aomi Myuock) lutar contra quem quer que seja, e sua gangue passa os dias dormindo, conversando, escolhendo novas casas para morar. Durante parte considerável da narrativa, eles soam como modelos musculosos posando de lutadores, fantasiados para um ensaio temático. O aspecto artificial e posado é reforçado pelos diretores, que abordam sentimentos realistas num cenário irreal.

As tensões existentes entre os personagens variam do homoerotismo (os rapazes se cobrem quando dormem na noite fria) à idealização quase religiosa, porém não sexual, de Jessica. O único espírito de competição nasce da vontade de impressionar a musa silenciosa, de sotaque estrangeiro. Por um lado, a sugestão da catástrofe implicaria em destruição ou na presença de oponentes ao redor. Por outro lado, o grupo caminha por shopping centers em pleno funcionamento, onde compram sorvetes e outras guloseimas. Afinal, onde começa e termina esta guerra? De onde vem o dinheiro para financiar a vida luxuosa, e por que tantas mansões estão abandonadas, porém em perfeito estado? O filme jamais responde às suas dezenas de questões em aberto. Os diretores preferem abandonar a trilha da lógica cartesiana para investir numa narrativa de sonhos, contemplativa, multicolorida e repleta de efeitos especiais caseiros.

Desta espécie de delírio coletivo resulta a aparência de um painel melancólico de homens carentes, que encontram na vida em grupo não uma possibilidade de sobrevivência, e sim uma chance real de afeto. A rotina profundamente ritualizada do grupo transmite ao mesmo tempo a impressão de que o filme se leva a sério demais e a sensação irônica de que aí reside sua consciência do absurdo. Terminamos a narrativa sem saber ao certo quem são estes personagens, de onde vêm e para onde vão. O espectador é mantido numa posição curiosa, ao mesmo tempo informado da artificialidade do procedimento (as letras na decoração de um bolo levitam e flutuam sobre os personagens) e da verossimilhança dos sentimentos de perda, de luto, de tristeza. Logo após uma morte cruel e sangrenta, Jessica chega à casa com presentes caríssimos trazidos sobre o braço – incluindo um rochedo gigantesco e um jet ski. Poggi e Vinel dedicam-se a frustrar qualquer tentativa de antecipação, brincando com o espectador tanto quanto brincam com seus personagens.

O que o discurso teria a nos dizer sobre esta realidade específica, sobre a oposição entre o caos e a norma, a sobrevivência e o consumo? Pode-se traçar hipóteses sobre a liderança feminina de um grupo de homens, sobre a ridicularização da vida privilegiada ou mesmo sobre a impressão eterna de uma guerra invisível, porém estes aspectos parecem distantes de qualquer aprofundamento no filme. Para o bem ou para o mal, Jessica Forever se fechar sobre si mesmo, enquanto proposta conceitual de desmontar gêneros e perturbar canais de comunicação com o espectador. Este seria um exercício de manipulação no sentido estrito do termo: como dois cientistas inovadores, mas também um tanto pueris, os cineastas se prestam a colocar substâncias díspares juntas, misturá-las para observar o resultado que podem produzir. O valor da empreitada se encontra mais no processo e na iniciativa do que nas fórmulas produzidas ao final.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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