Crítica

No momento em que os olhares do mundo estão direcionados para as eleições presidenciais dos Estados Unidos, que decidirão a sucessão de Barack Obama, o cineasta Zach Clark recua oito anos no tempo, situando a trama de Irmã justamente em 2008, ano da vitória que levou ao primeiro mandato do atual chefe de Estado norte-americano. É neste período final do governo George W. Bush, marcado pela intensificação das ofensivas militares no Oriente Médio, que encontramos Colleen (Addison Timlin), uma aspirante a freira que há anos tem evitado o contato com sua família. Certo dia, porém, a jovem recebe um e-mail de sua mãe Joani (Ally Sheedy), informando que seu irmão Jacob (Keith Poulson) retornou para casa após combater na Guerra do Iraque.

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Colleen decide, então, voltar a Asheville, Carolina do Norte, sua cidade natal, para passar alguns dias ao lado do irmão. Durante sua estadia, ela não só enfrenta os antigos problemas de relacionamento com a mãe, como também relembra seus tempos de adolescente fascinada pelo universo gótico e do heavy metal. Ao tratar do tema da família disfuncional, ligado de modo intrínseco ao forte subtexto político, e povoado por elementos do imaginário da cultura gótica, o diretor Zach Clark realiza um trabalho que se diferencia da linha das comédias de tintas dramáticas que proliferam no cenário indie americano. Em sua essência, Irmã examina o modo como lidamos com as expectativas e as frustrações em relação a nós mesmos e aos que nos cercam.

Essa análise passa também pela esfera política, pois a primeira eleição de Obama vinha carregada de um sentimento de esperança e da perspectiva de mudanças. O paralelo com a dinâmica familiar é encontrado na maneira como os filhos idealizam a figura dos pais antes de os reconhecerem como seres humanos comuns, e também na ótica inversa, dos pais que projetam seus desejos e insatisfações no futuro dos filhos. E a relação de Colleen e Joani retrata essa concepção: a garota busca na vida clerical a estrutura ausente em sua casa. A mãe, por sua vez, que fuma maconha e consome álcool sem pudores, se sente desapontada com uma escolha que se opõe à sua postura liberal.

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Ainda que seu contexto histórico seja atual, o longa emana uma aura que remete diretamente aos anos 1980. Isso se dá não só pela presença de Ally Sheedy, ícone do cinema oitentista, ou pela trilha sonora com bandas como GWAR e Christian Death, mas principalmente pela sensação de deslocamento de uma geração, algo comum tanto aos jovens da “década perdida” da era Reagan quanto aos da era Bush. Clark consegue transmitir com precisão esse clima de estranhamento que paira sobre a narrativa, materializado e verbalizado em cenas como aquela em que um garoto pergunta a Colleen (revivendo seu visual dark) e Jacob (desfigurado após a explosão de uma bomba no Iraque) se eles são monstros. Para o ex-fuzileiro, aliás, a questão da inadequação é bastante presente, pois mais do que sua aparência física, Jacob não assimila sua condição de “herói” perante a sociedade, por não se considerar um e nem ao menos compreender o significado das batalhas enfrentadas.

A ideia de grupo fechado da cultura gótica também serve à proposta de Clark, que aproveita para apresentar analogias entre este nicho e a religião: ambos com seus ícones, vestimentas próprias, canções e rituais. O plano de Colleen virando uma cruz que estava de cabeça para baixo é emblemático, enquanto o fato de pertencer ao convento das “Sisters of Mercy” gera uma ótima, e irônica, referência musical. As metáforas surgem em grande quantidade, da amiga ativista de Colleen considerada uma terrorista pelas autoridades ao número de arte performática sobre os atentados de 11 de Setembro. Associado ao cinema mumblecore – Joe Swanberg, nome forte do movimento, está entre os produtores de Irmã – Clark, em seu quinto longa-metragem, demonstra grande sensibilidade para alinhar a grande quantidade de elementos narrativos, mantendo o foco no núcleo familiar.

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O equilíbrio entre o humor e a melancolia se mostra cativante, sendo registrado pelo cineasta com notável apuro estético, ressaltando o papel das cores na construção da personalidade de Colleen, através de planos elegantes e precisos. O elenco, que conta ainda com o diretor Peter Hedges como pai da protagonista, corresponde às exigências dramáticas, com destaque para Addison Timlin, que deixa transparecer a insegurança, doçura e fragilidade de Colleen e seus conflitos. Sem cair na armadilha fácil de transformações radicais, o filme de Clark afirma que as desilusões servem como aprendizado para que seja possível se adaptar à reformulação contínua das expectativas. Caso da namorada de Jacob, que se mantém ao seu lado enfrentando as trágicas circunstâncias. Mesmo a volta às raízes de Colleen não representa uma regressão, mas sim um passo atrás para a resolução de assuntos inacabados, permitindo que ela possa prosseguir com suas novas escolhas. Como diz a citação do cantor Marilyn Manson que abre o longa: “Ao invés de ver a tragédia, transforme-a em magia”. Não por acaso, Clark reserva o grande momento de comunhão entre os personagens para uma festa de Halloween, onde todos têm permissão para libertar suas fantasias, encontrar seu lugar e aceitar ser quem realmente são sem julgamentos.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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