Crítica


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Sinopse

Grace é uma aclamada escritora de livros de mistério. Quando a sua irmã a chama para uma conversa urgente, Grace pega o primeiro voo até a cidadezinha. Pouco tempo depois, uma tragédia acontece. A escritora se une ao charmoso detetive da região para descobrir quem está por trás de uma série de mortes contra garotas que fazem performances eróticas na Internet.

Crítica

Os filmes bons são todos iguais, mas os ruins o são cada um à sua maneira. (Talvez isso não seja totalmente verdadeiro, mas vale a tentativa). De qualquer modo, há diferentes razões pelas quais um longa-metragem pode ser considerado péssimo: existem os casos de produções mal dirigidas e montadas, ou seja, precárias na realização e domínio da linguagem cinematográfica (caso de The Room, 2003). Em paralelo, alguns projetos incomodam pelo discurso racista, homofóbico, pela visão de mundo nociva (A Canção do Sul, 1946). Outras iniciativas soam apenas tolas: trata-se de discursos irreais ou idealizados, em embalagens padronizadas, dotadas de um cuidado mínimo para serem considerados “profissionais” — caso da integralidade do acervo Lifetime, e também de Indecente (2022). O resultado não desperta risadas por erros ou inabilidades da direção, tampouco perturba devido a qualquer mensagem retrógrada. Ele “somente”, entre aspas, possui um texto patético, do tipo que um roteirista iniciante, e pouco ambicioso, escreveria. Em termos de qualidade artística, esta adaptação ao cinema de uma obra de Nora Roberts atinge um nível semelhante àquele da autora de best-sellers.

Isso significa que a narrativa está alguns graus além do realismo e da verossimilhança. Grace Miller (Alyssa Milano) escreve livros de suspense e assassinato, e julgando pela cena inicial, aparenta ser uma escritora de dotes literários duvidosos — seria um alter-ego da própria autora do livro? Quando sua irmã é brutalmente morta dentro de casa, a artista insiste em participar das investigações, afinal, “é uma especialista”. A premissa soa tão absurda quanto um fã de Grey’s Anatomy participando de cirurgias reais, mas neste universo, os deslocamentos do real são permitidos. Grace inicia um romance com o principal detetive do caso, e um dos únicos da cidade, em paralelo à pesquisa sobre o responsável pela morte da irmã. Ela dorme na casa dele, é claro, facilitando a agenda desta dupla de investigadores. Seguem-se performances eróticas na webcam, um casal gay adolescente, um serviço pornô em família, estudantes do Ensino Médio com sérios problemas edípicos, e policiais ineficazes, ou letárgicos. Ninguém soa naturalista, nem possível. Estamos num universo paralelo de personagens-fetiche, onde os protagonistas são lindos, os vilões adquirem traços monstruosos e se traduzem em figuras gordas, ruivas, nerds, de olhar perverso. O mundo se abre às pessoas negras, gays e indianas, contanto que na função de coadjuvantes com importância reduzidas. Digam suas poucas falas e liberem o holofote aos brancos héteros atraentes, por favor.

Indecente busca constituir um filme progressista a respeito da violência contra a mulher. Kathleen (Emilie Ullerup) é perseguida pelo marido milionário, que visa impedir a guarda da criança pequena, e na ausência de recursos financeiros, se vê obrigada à prostituição online. Está claro que a tímida professora detesta esta atividade, graças à decisão de manter o “quarto dos fetiches” trancado, e pelo evidente olhar de desconforto quando é contratada pelos clientes. Pouco depois, Grace explica que seus livros jamais exploram de modo fetichista as maldades cometidas contra a mulher, preferindo denunciar o machismo e o pensamento patriarcal — argumentos com os quais o longa-metragem também tenta se defender. Ora, o discurso nunca se priva de considerar o emprego paralelo de Kathleen de modo “sujo”, reprovável, enquanto motivo de vergonha. A dificuldade da diretora Monika Mitchell em filmar cenas sensuais e eróticas denota a vontade de esconder ao máximo as atividades no cômodo avermelhado. Em paralelo, a solução à escritora “empoderada” será cair nos braços de um detetive musculoso. O roteiro ignora o trabalho de luto, os traumas e o medo: a perda violenta de Kathleen é superada pela descoberta do amor romântico, literalmente na casa ao lado.

O tratamento atrapalhado dos relacionamentos e sentimentos decorre da direção pouco sofisticada. Há uma dificuldade notável em trabalhar tempos e espaços, dois elementos fundamentais da mise en scène, sobretudo no caso dos suspenses psicológicos. As sequências na casa são mal filmadas, em enquadramentos e ângulos repetidos. A rapidez com que o assassino chega e sai dos lugares beira a fantasia, o que se estende à facilidade de Grace em penetrar espaços onde nunca deveria entrar (delegacias, casas, sala do vizinho). O namoro com Ed (Sam Page) ocorre com velocidade espantosa, semelhante àquela das descobertas de novos corpos — temos a impressão de que este vilão pró-ativo dedica-se a uma morte por noite. O relacionamento entre dois garotos soa absurdo, visto que sequer frequentavam os mesmos locais, e nunca são vistos em cena juntos. Até coisas pequenas denotam o descaso com o bom senso: a entrada e saída imediata de alunos na sala de aula, apenas para cumprimentarem a escritora em luto; as portas abertas na casa principal da trama, para acolher o criminoso; o desconhecimento do vilão sobre estar sendo filmado dentro de um cômodo onde estava ciente da existência de câmeras. O resultado soa simultaneamente acelerado e arrastado: acelerado, porque as emoções se transformam da noite para o dia, e arrastado, porque os personagens andam em círculos durante a investigação fajuta.

Por fim, a produção acredita que o feminicídio se corrige com amor. Após diversos crimes interpretados como ações pontuais de uma pessoa maluca (ao invés de um fator estrutural), oferece-se um namorado a Grace, em forma de reparação, além de material para um novo livro. O aspecto chocante da trama se torna asséptico nas mãos de Mitchell: as cenas de morte são mornas, ou apenas sugeridas, enquanto o sexo é retirado de cena. Constrói-se um filme de assassinatos para tem quem pavor de violência; e um filme sobre call girls para espectadores que julgam esta atividade vulgar — vide o título brasileiro, e o original, “Descarada”. Por isso, a transformação temporária de Grace em stripper representa um ato de coragem e martírio — para a direção, a heroína “se rebaixa” em nome da descoberta da verdade. A Netflix oferece um filme de mortes para quem gosta de romance, ou ainda um falso filme que fisga o público pela promessa de sexo e suspense, até confessar que detesta estes dois aspectos, preferindo a superação de si. A direção nunca se preocupa de fato com a vítima real, Kathleen, encarnada de maneira canhestra por Emilie Ullerup e esquecida por todos ao redor. As mulheres “descaradas” são mortas sem comoção real, nem espírito de justiça. Apenas a descarada fictícia, e a escritora de mortes fictícias, recebe alguma forma de recompensa emocional. O falso prevalece em relação ao real.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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