Crítica


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Sinopse

Em busca de uma casa num subúrbio tranquilo, Alain e Marie se deparam com uma propriedade peculiar e atrativa. O corretor avisa ao casal que o sótão possui uma particularidade que transformará suas vidas para sempre. Seduzidos por esta perspectiva, eles compram o imóvel.

Crítica

Os espectadores familiarizados com os filmes de Quentin Dupieux devem saber muito bem o que esperar de sua nova comédia. Depois de conceber um pneu assassino em Rubber (2010), um relógio contando o tempo diferentemente em Wrong (2012), uma peça de teatro envolvendo cadáveres em Na Delegacia (2018), e um homem obcecado por sua jaqueta a ponto de enlouquecer em Deerskin: A Jaqueta de Couro de Cervo (2019), o que ele poderia trazer desta vez? Os fãs do absurdo, do surrealismo e do nonsense podem esfregar as mãos, curiosos, aguardando a próxima traquinagem do cineasta que adora romper com os limites da lógica. O que viria agora? Mais algum objeto maligno? Nada disso: a brincadeira da vez consiste no porão de uma casa onde, ao se atravessar, o morador pula automaticamente doze horas no tempo, enquanto rejuvenesce três dias. Não se espera qualquer justificativa científica para este fenômeno, é claro: o humor decorre precisamente de sua impossibilidade, e do caráter fortuito das regras. Por que doze horas? Por que três dias, ao invés de quatro, cinco, uma semana? Por que sim. Como de costume, a graça se encontra em introduzir o elemento de magia numa realidade banal, afetando pessoas comuns e desprovidas de qualidades notáveis. O cineasta imagina um ponto de partida improvável para então desenvolvê-lo de modo verossímil: o que fariam os novos habitantes da residência, diante do pequeno túnel do tempo?

Ora, nossa grande surpresa consiste em descobrir que, neste caso, eles farão pouco uso do poder que lhes é conferido. Compreende-se que o autor fuja ao caráter espetacular das grandes produções, mantendo a aventura num registro íntimo. No entanto, a banalidade atinge um teor inesperado: o tal duto temporal possui função mínima na trama que aparentava fascinada por sua existência. Quando os tipos fracassados de Quero Ser John Malkovich (1999) descobriam uma portinha levando à cabeça do ator, a traquitana era explorada financeiramente, por muitas pessoas, ao limite da loucura e da perda de identidade. Em Incredible But True (2021), testemunhamos a esposa Marie (Léa Drucker) descendo repetidas vezes pelo dispositivo, embora as interações nunca se desenvolvam: por que ela nunca testa deixar a escotilha aberta? Por que jamais vemos pessoas subindo de volta? Se a casa de baixo representa uma cópia da original, ela poderia possuir seu próprio sótão com um duto temporal, certo? Ninguém percebe as doze horas passadas pela mulher ausente? Os proprietários anteriores sabiam disso, e exploraram a passagem? Como nenhum outro personagem descobre, nem tenta desvendar, o funcionamento desta máquina? Um quiproquó envolvendo o chefe Gérard (Benoît Magimel) seria perfeito para empregar os recursos fantásticos a favor da trama. Mero engano: o homem sequer será convidado a descobrir a existência deste elemento. O buraco no sótão se assemelha a um gadget inútil.

Compreende-se que Dupieux queira explorar o humor da não-descoberta: afinal, que vantagem prática leva um corpo rejuvenescido em três dias? Em contrapartida, faltam-lhe conflitos para trabalhar em cena. Apenas esta escassez pode justificar a interminável piada do pênis eletrônico de Gérard, que também se repete sem se desenvolver. Há uma única ideia por trás desta simples gag de humor físico, e o roteiro nunca permite que ela se funda com o conflito central. Nesta comédia, resta a impressão de que o autor criou dois dispositivos mágicos, mas não encontrou um caminho narrativo para explorá-los a contento. A estética procura banalizar esta aventura: o casal vive em dias nublados, sobre luzes superexpostas e cansativas, utilizando roupas pastéis e posicionando-se diante de paredes de cores beges, brancas, amarelas claras. Por consequência, sugere-se de maneira direta que Marie e Alain (Alain Chabat) possuam vidas entediantes. Em oposição aos dois, o casal jovem formado pelo chefe e a namorada Jeanne (Anaïs Demoustier) ilustra um comportamento vulgar e grosseiro, pois artificial: ele utiliza o pênis regulável para tornar o relacionamento mais interessante, enquanto ela cria uma persona sexualmente voraz. O autor busca o retrato das crises de meia-idade, focadas no desempenho sexual para o homem, e na aparência jovem para as mulheres. Ora, é difícil extrair qualquer discurso relevante desta provocação simples aos estereótipos do envelhecimento.

O andamento da trama é prejudicado por uma sequência improvável na reta final. Dupieux oferece uma longuíssima série de elipses e avanços narrativos sem som direto, saltando dias e meses enquanto articula transformações brutais na vida dos heróis. Para isso, subtrai os diálogos e aposta na comicidade física. Casais se separam, se formam novamente, brigam, fazem as pazes, envelhecem ou rejuvenescem abruptamente. Para uma trama focada obsessivamente na questão do tempo que passa, seria fundamental que estes processos ocorressem diante dos nossos olhos, em relações plausíveis de causa e consequência. Ora, o autor acelera as metamorfoses, colocando entre parêntese o teor mais importante de seu discurso. Saem de cena os aspectos pesados, ou aceleram-se para sumirem o quanto antes da vista do espectador. Resta uma contradição: o diretor abraça um tema grave, para então fugir à complexidade da representação. O imperativo da piada e da leveza prejudica muito o terço final, quando as explosões de loucura e violência deveriam surtir efeito. De certo modo, o espectador é preparado a uma catarse que jamais ocorre como tal, pois minimizada pelo humor autocondescendente.

Por fim, resta uma fantasia sem interesse de abraçar a linguagem fantástica; um conto de horror a respeito do envelhecimento, porém avesso à perspectiva de perturbar o espectador; e um filme a respeito da banalidade, incapaz de transmitir esteticamente o humor da vida tediosa de dois sujeitos comuns. Incredible But True deposita um peso excessivo sobre os diálogos para fazer avançar a trama, sem perceber que a configuração de um poço no sótão e uma casa espelhada na outra seriam motores de curiosidade suficientes. Pela primeira vez, o cineasta parece duvidar do potencial disruptivo de sua premissa, rendendo-se a formas cômodas de humor. É certo que atores experientes como Alain Chabat e Léa Drucker se divertem com o material, quase tanto quanto Benoît Magimel e Anaïs Demoustier em tipos muito distantes de seus personagens habituais. Há um prazer do deslocamento, do jogo cênico contrário às expectativas. Isso ajuda, porém seria insuficiente para atribuir relevância ao resultado. A figura de um duto ou buraco carregaria forte simbolismo em suas vertentes psicanalíticas e fabulares, face aos temas da crise de meia-idade e do medo da morte. Ora, Dupieux aparenta ter filmado o primeiro tratamento do roteiro, ou talvez tirado o pé do acelerador em seu potencial subversivo. Esta radicalidade dócil e cômoda não possui nada de verdadeiramente radical.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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