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Sinopse

Quando o namorado de Daria, um rapaz viciado, vai parar na prisão, ela é enviada pelos pais a uma clínica de reabilitação para largar a heroína. Alí a lealdade incondicional ao namorado a transforma em uma figura extraordinária aos olhos dos homens que também estão internados, o que acaba a protegendo de abusos sexuais. Ser desejada e protegida por todos faz com que Daria se sinta especial pela primeira vez na vida, posição que ela aproveita até a chegada de um novo e misterioso paciente.

Crítica

Daria (Ana Dumitrașcu) se senta em frente à diretora da clínica de reabilitação. Ela tem os olhos arregalados como um animal acuado, enquanto balbucia monossílabos, olha para baixo, esconde parte do rosto com os cabelos. Escutamos a voz da representante da instituição e da mãe, logo ao lado, porém a câmera permanece fixa no rosto da menina. Internada devido ao vício em heroína, ela seguirá atônita às descobertas ali dentro: então o homem poderoso quer sexo em troca do uso do celular? Infâmia! O outro deseja continuar usando drogas quando sair? Que absurdo! Um casal ousa fazer sexo na cama ao lado? Ultraje! Delicada e chorosa, semelhante a um objeto prestes a se quebrar, ela perambula pelos cômodos do local em aparência de eterno sofrimento. Mais do que uma vítima, os diretores George Chiper-Lillemark e Monica Stan fazem da garota sua Justine, a heroína trágica do Marquês de Sade que tentava ajudar todos em seu caminho, sendo abusada, inclusive sexualmente, por estas pessoas. A dupla compartilha com o marquês o olhar de perversão: Imaculada oferece ao espectador duas horas de tortura, humilhação, intimidação, abusos psicológicos e sexuais contra a angelical protagonista.

O dispositivo abraça o estereótipo da mocinha indefesa em meio aos vilões sedentos por sexo: com graus variados de chantagem, cada interno tenta explorar o corpo de Daria, namorada do poderoso traficante Vlad, que se encontra na prisão. Eles a respeitam por se tratar da mulher de um sujeito famoso, com o qual alguns deles possuem relações diretas, porém nutrem um fetiche ainda maior pela conquista da “imaculada”. A aparência virginal se deve à infantilização extrema da jovem, que nunca suspeita de más intenções quando um homem exige que ela se sente na cama dele, dentro de um quarto trancado. Multiplicam-se a seguir os insultos, o gaslighting, o slut shaming, os jogos onde os rapazes passam a mão nela e tentam beijá-la. A câmera, tão fetichista quanto os internos (identificando-se com o olhar de um deles), segue direcionando a janela asfixiante e próxima do quadrado (em formato de tela 1 x 1:33) ao rosto da menina assustada demais para reagir. A heroína se deixa levar de maneira lânguida e fatalista, incapaz de elevar o tom de voz, de utilizar seu “poder" contra os agressores, ou de se aliar às outras mulheres em vista de uma aliança. Ela é esvaziada de malícia e inteligência. Daria representa a vítima na acepção pura, e portanto utópica, do termo.

Enquanto isso, a descrição da clínica de reabilitação, onde se desenvolve a integralidade da narrativa, soa absurda. Os pacientes passam os dias conversando e andando de um quarto ao outro, sem suporte médico, psicológico, atividades programadas, verificação dos exames de sangue e urina, acompanhamento da evolução do quadro clínico. Estes dependentes de drogas nunca sofrem crises de abstinência, limitando-se a tomar alguns comprimidos de metadona por dia e brincarem nas horas restantes. Não existe vigilância de seguranças, ou qualquer forma de controle por câmeras e instrumentos de autoridade e coerção. Nesta prisão-hotel luxuosa, eles caminham a esmo, torturam-se a gosto, dormem na mesma cama apesar das proibições, prendem-se em almoxarifados sem suspeita dos dirigentes. A perversidade da direção se estende à conveniência de um cenário livre de retaliações, facilitando o caminho ao máximo para a sequência vertiginosa de hostilidades. Aos poucos, o filme desumaniza Daria como fazem os personagens ao redor, reduzindo-a ao corpo martirizado, oferecido aos beijos e tapas. Como diria a canção brasileira, "Joga pedra na Geni / Joga pedra na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni”.

A estética acompanha a dinâmica opressora através de uma estranha conversão da violência em ternura. George Chiper-Lillemark, também diretor de fotografia em Não me Toque (2018), reproduz um estilo semelhante em sua obra como cineasta, demonstrando uma obsessão pelo contato físico. Os jovens passam as mãos nos cabelos de Daria, no pescoço, no rosto, nos seios, nas pernas e braços. A imagem, fascinada, fecha-se em plano de detalhe para captar as dezenas de “carinhos" da parte dos sujeitos que a escravizam. O pressuposto de proteger uma mulher ao restringir sua liberdade, tão comum aos textos religiosos, poderia constituir o alvo de críticas, no entanto, o longa-metragem parece acreditar que Spartac (Vasile Pavel) a prende na cama consigo porque gosta dela; Costea (Cezar Grumazescu) a chantageia para impedir que faça coisas erradas, e Manu (Rares Andrici) a beija à força por estar perdidamente apaixonado. A condescendência, para não dizer romantização da violência contra a mulher, torna o resultado ainda mais questionável. As cores pastéis, o ritmo linear e quase monótono das ações, tratam de assepsiar os acontecimentos na clínica. O filme naturaliza a exploração, para o prazer dos homens e do espectador. 

Em seu primeiro longa-metragem, a psicóloga Monica Stan retrata uma história que ocorreu consigo na juventude. Por isso, estaria protegida de eventuais críticas, certo? Afinal, ela viveu aquela situação, e a conhece como ninguém. É importante neste caso frisar que os questionamentos se dirigem à representação sádica, ao invés da veracidade dos fatos. Como qualquer pessoa tendo experimentado um trauma, Monica pode estar impregnada de uma memória afetiva, ressaltando ou exagerando os fatores que lhe parecem relevantes enquanto diretora. Caso tenham ocorrido exatamente desta maneira, o olhar necessitaria então de um posicionamento firme aos conflitos, contrário a tamanho conformismo. No final, pouco importa o que ocorre de fato: o filme precisa falar por si próprio, enquanto obra autônoma. Imaculada propõe uma “descida aos infernos”, como diriam os franceses, no sentido de adotar um conflito inicial e então intensificá-lo ao limite da explosão. Se a responsabilidade dos personagens masculinos e da instituição soam evidentes nos abusos, cabe questionar a responsabilidade do próprio filme no olhar fetichista à apropriação do corpo alheio.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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