Crítica


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Sinopse

Mudanças globais vistas por meio da fé e da religiosidade. Sete pessoas de diferentes províncias indonésias combatem o negativismo das transições climáticas, recorrendo àquilo que acreditam ser divino.

Crítica

Talvez as sociedades contemporâneas não percebam o quão recente foi a mudança de percepção posicionando o ser humano no centro do universo, enquanto elemento hierarquicamente superior à natureza e aos outros animais. Antes do Iluminismo, o homem era sujeito aos caprichos de um Deus misterioso que orquestrava dilúvios, enviava pragas, permitia secas e nos tentava com maçãs. A ideia de que a natureza constitui uma ferramenta divina superior a nós – ela existia antes dos seres humanos, e deve permanecer após nossa eventual extinção – é resgatada pelo documentário Ilhas de Fé (2018). A diretora Chairun Nissa foge das grandes cidades para compreender de que modo pequenas comunidades reclusas e religiosas, vivendo dentro das florestas indonésias, retornam à estratificação social anterior, acreditando que devem adaptar suas vidas à natureza, não o contrário. Cada grupo determina a quantidade permitida de madeira para cortar num ano, os raros períodos abertos à pesca, a melhor maneira de plantar, reaproveitar alimentos e conduzir uma vida amigável ao meio ambiente.

A escolha de grupos religiosos pode sugerir a causalidade: eles seriam protetores das árvores e animais por serem religiosos, algo que aproximaria a crença de um sinal de virtude. No entanto, o projeto utiliza a religião de modo mais amplo e inteligente. Primeiro, representa um apanhado vasto de espiritualidade, sem a presença de tempos, nem as restrições castradoras dos livros sagrados. Segundo, ela busca a ideia de que todas as fés, por mais distintas que sejam, pregam o respeito e o cuidado da natureza, percebida como concessão feita aos homens. Assim, grupos animistas, deístas, católicos e muçulmanos são representados não por suas particularidades, e sim por suas semelhanças, no caso, a importância da Terra, da água, das plantas e das florestas. Ainda que simbolicamente, a diretora encontra um terreno de compreensão mútua entre doutrinas às vezes opostas. Nissa demonstra igual atenção e respeito quando conversa com um padre, um imã e outros líderes religiosos, procurando explicar por quais raciocínios eles conduzem ao mesmo final. Nenhuma religião é vista como mais propensa ao cuidado da natureza do que a outra, visto que o projeto inteiro busca colocar todos os grupos de humanos, o planeta e Deus em pé de igualdade.

Ilhas de Fé dispõe de recursos surpreendentes para esta empreitada. Há sobrevoos da natureza com drones, movimentos de câmera sobre gruas no pátio de templos budistas, elegantes estabilizadores de imagem para correr juntos dos moradores durante a caça de um javali etc. A direção de fotografia busca embelezar a imagem não pelo acréscimo de ornamentos (nada de luz extra, trilha sonora nem efeitos imersivos de montagem), e sim pelo que a Indonésia pode oferecer de preciosidade in loco. Enquanto um grupo de homens atravessa um riacho para preparar a pesca, a câmera encontra o tempo de admirar a pequena libélula pousada sobre uma pedra. Em certa medida, os atributos estéticos são coerentes com a ideologia empregada, no sentido de se submeterem ao que ao ambiente tem a fornecer por si próprio, sem invadir, modificar, nem condicioná-lo às nossas vontades. Talvez algumas cenas invistam em caráter tão fabuloso da floresta (em imagens com profundidade de campo reduzida, contraste impecável sobre os corpos e texturas) que beirem a reportagem televisiva de alta qualidade, nos formatos consagrados pela Discovery Channel. Mesmo assim, o meio ambiente jamais se limita a uma paisagem decorativa, nem um fundo de tela para nossos aparelhos digitais. Nissa faz questão de ressaltar os impactos econômicos, sociais e políticos de cada elemento das ilhas indonésias.

É claro que esta demonstração generosa e didática se volta ao público que desconhece aquela cultura, sobretudo para o olhar estrangeiro. O filme nunca é feito com os moradores, e sim sobre eles. Eles se tornam objetos de estudo, exemplos e modelos do potencial de um estilo de vida alternativo ao nosso. A cineasta aproxima-se dos melhores plantadores, dos líderes comunitários mais importantes e dos casais que criam uma lavoura-escola para ensinar às crianças o valor do plantio orgânico. Corre-se o risco de enxergar na exceção uma regra, ou seja, acreditar que o modelo de um microcosmo de autogestão poderia ser expandido ao país. Felizmente, rumo ao final, o documentário adota um olhar sociológico, reconhecendo que grandes capitais não conseguiriam implementar rotina semelhante àquela dos moradores da floresta, e que “os cientistas só trabalham para a indústria e para o dinheiro, o que leva à exploração”, conforme frisa um personagem. Cristãos, muçulmanos, budistas e outros encontram-se na denúncia do capitalismo predatório, da aliança com grupos exploradoras, e da individualidade das grandes cidades, com pessoas coladas às suas telas virtuais. (Ironicamente, o filme é lançado diretamente numa plataforma de streaming).

Por fim, o ponto de vista é menos humanitário e religioso do que político, no sentido de refletir sobre o papel de políticas públicas para a gestão dos recursos naturais. Enquanto linguagem cinematográfica, o resultado se revela tão ostensivamente produzido quanto modestamente articulado em seu discurso. Apesar da transição fluida entre os diferentes grupos de crenças – belo trabalho da montagem, vale ressaltar -, a narrativa nunca perde a oportunidade de introduzir dezenas de letreiros durante as cenas para explicar qual forma de pesca seria menos agressiva aos rios, qual tipo de energia provoca o menor impacto às águas, qual área da floresta pode ser utilizada, com qual frequência etc. Caminhamos no limiar da reportagem de fim utilitário, servindo em paralelo de panfleto turístico sobre as belezas escondidas do arquipélago asiático. “A natureza é a prova mais concreta da glória de Deus”, conclui uma agricultora. “Na verdade, a vida é muito simples”, declara outro. Nissa combina o caráter descritivo e o moralismo mais simples (ganância é ruim; a natureza é boa) com um formato refinado em termos de fluidez e composição de imagens. As críticas políticas poderiam ir muito mais longe, porém o projeto prefere sustentar a defesa de valores amplos, ao invés de apontar o dedo aos culpados. Busca-se uma forma de iluminação pacífica, ao invés do enfrentamento e da revolução social.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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