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Sinopse

Em uma vila isolada na Macedônia do Norte, Hatidze, mulher de 50 e poucos anos, cuida de uma colônia de abelhas. Um dia, uma família itinerante se instala ao seu lado, e o reino pacífico de Hatidze dá lugar a motores barulhentos, sete crianças e 150 vacas. No entanto, ela se anima com a vizinhança e passa a dividir seus conselhos sobre apicultura, sua afeição e seu conhaque especial. Porém, Hussein, o patriarca dessa família, toma uma série de decisões que podem destruir o modo de vida de Hatidze para sempre.

Crítica

Diante de algum documentário sobre uma cultura distante, uma chave de leitura importante se encontra no questionamento do ponto de vista. De que maneira o(a) diretor(a) observa seus personagens e seu local? De perto, adentrando a intimidade, possivelmente interferindo no cotidiano e interagindo com o espaço filmado? De longe, como se não fosse percebido, e quem sabe até espiando? Fazendo-se presente, ou buscando a invisibilidade? Estes questionamentos se tornam pertinentes diante de um projeto como o macedônio Honeyland, muito singular pela questão do posicionamento do olhar.

Por um lado, os diretores Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov estão muito perto de Hatidze, sua protagonista, acompanhando cada passo na rotina da solitária apicultora. A câmera segue esta mulher por penhascos íngremes, em busca das colmeias, e se faz presente dentro do casebre, ao lado da cama da mãe doente, tanto de dia quanto de noite, tanto no vilarejo agrícola quanto na cidade. Por outro lado, a câmera proporciona a observação à distância, captando os olhares suspeitos da personagem diante da chegada de uma numerosa família no terreno ao lado, além das longas caminhadas de Hatidze pelo campo para pegar lenha. Durante a mudança definitiva dos vizinhos, a câmera oferece um improvável plano e contraplano: estamos ao mesmo tempo com a apicultora, observando o quintal alheio, e neste quintal novo, captando o olhar de curiosidade da protagonista.

Isso implica numa sensação de onipresença, devido a um trabalho cuidadoso dos cineastas. Mesmo sem interagirem com os personagens, e evitando qualquer letreiro ou informação explicativa, eles se mantêm bastante próximos, no meio das brincadeiras das crianças, em pleno pasto quando as cabeças de gado ameaçam fugir, ao lado de uma árvore cortada em segredo. Os cineastas devem ter passado tempo considerável neste local, com as famílias, para adquirir tamanha intimidade e proximidade, sendo capazes de enxergar ao mesmo tempo os grandes planos gerais e o minúsculo detalhe de uma abelha investigando o corpo de outra abelha morta. A dupla de diretores explora todos os recursos de linguagem cinematográfica à disposição, tornando a observação humana imersiva, porém não intrusiva.

Entretanto, a produção não dispõe de recursos fartos, como se atesta pela qualidade um pouco deficiente da captação digital. Não existem movimentos mirabolantes de câmera, tampouco se percebe qualquer interferência de luzes artificiais para as filmagens noturnas. Kotevska e Stefanov trabalham com o material in loco, farto em implicações psicológicas (Hatidze teme ficar sozinha quando a mãe morrer e os vizinhos se forem), sociológicas (o declínio da apicultura no local) e econômicas (o medo da miséria pela competição com a produção de mel dos vizinhos). Honeyland surpreende ao construir uma narrativa muito bem desenhada pela montagem, como se esta trajetória tivesse sido ser roteirizada e controlada pelos diretores. A protagonista segue a sua própria “trajetória do herói”, num percurso não muito diferente daquele que se encontraria na ficção.

Talvez por este motivo, o documentário macedônio soe tão acessível ao público, representando o seu país na corrida ao Oscar e lotando todas as salas durante a Mostra Internacional de São Paulo. Além disso, é inegável o papel do humor e da espontaneidade das crianças no resultado: Hatidze é uma mulher espirituosa, de caráter forte, que dança, canta e diz o que pensa. Já as crianças morando ao lado surpreendem pela espontaneidade típica dos pequenos, e também pelo comportamento surpreendente, aos olhos ocidentais, em instantes sem a vigilância dos pais – vide a cena em que o bebê fica perdido entre os bois correndo, quando o irmão dele leva um coice, ou ainda as numerosas cenas de picadas de abelhas. Parte da emoção provém de um afeto real pelo pobre bebê coberto de insetos, mas parte do riso talvez venha do olhar exótico, estrangeiro, àquela cultura tão distante dos nossos padrões ocidentais.

Por fim, sem qualquer necessitar de explicação por parte dos diretores, o documentário transforma Hatidze em símbolo de respeito à natureza, em contraste com a ganância do chefe da família vizinha, preocupado em produzir mel a qualquer preço, mesmo que isso baixe a qualidade do produto, enquanto queima um terreno conjunto sem se preocupar com a apicultora ao lado. Como numa fábula exemplar, esta história filmada durante tempo considerável reflete a crise da modernidade num lugar isolado de tecnologia, afetando especialmente as figuras mais vulneráveis, e ironicamente mais resistentes, como Hatidze. Uma pequena intervenção de trilha sonora, na conclusão, serve de recurso dos diretores para abraçar esta mulher, idealizá-la em seu caminho rumo a um futuro incerto.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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