Crítica


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Sinopse

Gilles Caron era um renomado fotojornalista quando desapareceu no Camboja, em 1970. No entanto, ele deixou um arquivo completo com todas as suas fotografias tiradas profissionalmente. A diretora efetua um percurso dos locais e experiências vividas pelo artista através de suas imagens.

Crítica

A premissa deste documentário é fascinante: Mariana Otero se depara com a história de Gilles Caron, fotojornalista desaparecido no Camboja nos anos 1970. Ao invés de narrar sua trajetória pessoal a partir de dados e entrevistas, prefere deixar que as fotografias falem por si mesmas. Ela se ampara de um arquivo com 10 mil fotos, para então restituir a ordem cronológica e compreender suas escolhas de viagem, tema, ângulo, enquadramento, iluminação. A cineasta acredita que a arte constitua um reflexo direto de seu criador, e que a melhor maneira de compreender a pessoa venha do próprio trabalho. Assim, demonstra o esforço de uma pesquisadora acadêmica, dedicada a desvendar o estilo e os procedimentos de Caron. Ao invés de buscar literalmente os restos mortais do fotógrafo e resolver a lacuna do passado, prefere superá-la simbolicamente, ao imortalizá-lo no cinema. O personagem revive, eternizado em imagens, da mesma forma que preservou um fragmento da sociopolítica. Cinema e fotografia still se unem na capacidade de fornecerem um documento do real, não enquanto acesso a uma verdade, mas na condição de resgate de algo que, algum dia, se produziu em frente às câmeras.

Otero parte do princípio teórico que o olhar modifica o mundo à sua frente. Em outras palavras, além de sermos influenciados por nossas vivências, também exercemos um impacto sobre aquilo que observamos. Isso vale tanto para os aspectos pragmáticos (as fotos de Caron ajudaram na descoberta de massacres internacionais) quanto para a percepção de que lugares têm seu valor modificado pela percepção ao longo do tempo. O principal símbolo disso se encontra na chegada do fotógrafo ao Muro das Lamentações, quando não sabia que se tratava do importante ícone religioso. Nas primeiras fotos, o protagonista o retrata como uma fortificação qualquer. Depois, informado do símbolo associado à construção, passa a enxergá-la de outra maneira. O muro somente se torna precioso a partir do momento em que as pessoas o consideram assim. Nós somos modificados pelas sociedades, mas também alteramos estruturas de acordo com nossa avaliação e interpretação. Otero adere ao gesto de seu personagem principal, retornando através das fotos às cidades vistas por Caron em busca de algo que tenha escapado ao fotógrafo, ou aos estudiosos desde então. Existe um componente obsessivo na análise repetitiva de fotos consagradas, plano a plano, incluindo o material descartado pelo fotógrafo para compreender sua movimentação exata na rua, a busca pelo melhor ângulo, pela expressão ideal do fotografado.

Durante pelo menos dois terços da trama, História de um Olhar (2020) constitui um ótimo exercício metalinguístico de análise da imagem. Otero revela películas, amplia fotografias, convida historiadores para ajudarem nas explicações históricas, traça as caminhadas do protagonista sobre um mapa. Ela deduz a personalidade dele através do material produzido: a surpresa diante de uma revolução, a apatia face à guerra que conhecia tão bem, a tristeza ao testemunhar uma criança vestindo roupas de soldado, e a frustração no quarto de hotel, quando um rolo de película não chega à redação a tempo de ser publicada. O filme preserva a vida pessoal deste homem, na condição de pai e marido, atendo-se ao histórico em guerras e massacres na segunda metade do século XX. Pelos olhos de Caron, ressignificados por Otero, revisitamos os conflitos étnicos na Nigéria, a guerra civil na Irlanda do Norte, a guerra no Vietnã etc. Estes frames congelados, porém multiplicados em ponto de vista (o artista tirava centenas de fotos da mesma cidade) sugerem movimento, aproximando o documentário da dinâmica do cinema de animação. Para respeitar o ponto de vista original, o filme apresenta as fotografias mais chocantes, incluindo crianças raquíticas e cadáveres ao chão, em silêncio completo, sem narração nem trilha sonora.

No entanto, rumo ao final, o documentário se transforma sensivelmente. Pela primeira vez, a diretora decide visitar concretamente um país percorrido pelo personagem, no caso, a Irlanda do Norte. Ela busca as ruas captadas pelo artista, reencontra os adolescentes fotografados, questiona sobre o impacto destas imagens em suas vidas. Este procedimento estava ausente até então: a direção preservava a análise de dentro de um quarto, exclusivamente a partir das fotografias de Caron. A chegada de entrevistas com antigos manifestantes produz um choque: de repente, encontramo-nos diante de outro filme. As entrevistas com os personagens não trazem qualquer elemento relevante sobre a época: eles se contentam em dizer que se esqueceram do episódio, estão distantes da política hoje e desconhecem o fotógrafo. Por extensão, estes trechos se tornam incoerentes com a abordagem: por que Otero evita a viagem à Nigéria, ao Vietnã e a outros países para reencontrar as ruas visitadas pelo francês, e os personagens das fotografias icônicas? O voo da europeia até a Irlanda soa mais conveniente do que a jornada por outros continentes. No entanto, ou se assume a reconstituição literal dos passos de Caron, ou se atém apenas ao olhar dele. A reta final retira da investigação o caráter simbólico de uma conversa a dois, entre diretora e fotógrafo.

O incômodo se estende a outros elementos da direção. A narração carinhosa de uma carta endereçada ao morto representa um dos elementos mais desgastados do documentário biográfico. Visto que o diálogo se dirige de fato ao espectador, esta ferramenta retórica se esgota com rapidez, enquanto veículo fácil de uma poesia fúnebre. Além disso, a cineasta confessa que as fotografias de guerra foram minoritárias nas atividades do protagonista em relação aos retratos de celebridades e a cobertura de eventos parisienses. No entanto, estes fragmentos do artista são praticamente esquecidos pela montagem – a reconstrução do olhar se revela seletiva e parcial. Nas últimas cenas, Otero começa a introduzir entrevistas à distância, através de telas, algo que rompe por completo com a estrutura estabelecida. Felizmente, História de um Olhar se conclui antes de sair completamente dos trilhos. Se tivesse eliminado estes procedimentos anexos, a autora teria atingido um resultado mais potente. Afinal, as considerações pessoais dela e do historiador oferecem material de reflexão suficiente. Apesar da mudança de rumos, o filme preserva a fascinação pelo olhar, fomentando um encontro rico entre as linguagens do cinema e da fotografia.

Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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