Crítica

Em frente à televisão, Juan Andrés Stoll encara a tela com descaso e indiferença. O comportamento poderia ser normal se no aparelho não estivesse em jogo o futuro do protagonista de Hiroshima – um musical silencioso. No sorteio transmitido ao vivo está a possibilidade de deixar o trabalho na padaria e encaminhar uma carreira na companhia de balsas. Quando o papel sorteado exibe seu nome, Juan busca conferir no comprovante de inscrição quem ele realmente é. Não há vibração ou arrependimento, apenas a confissão silenciosa de quem gostaria de ser qualquer outra pessoa.

Hiroshima é o aguardado filme de Pablo Stoll após a morte do companheiro e amigo Juan Pablo Rebella (1974-2006). Juntos co-dirigiram 25 watts (2001) e Whisky (2004), filmes de uma geração responsável por dar ao cinema uruguaio evidência nunca antes alcançada, principalmente se comparada às das cinematografias vizinhas, como a argentina e a chilena. Menos mal que o futuro do mercado de cinema uruguaio não dependa unicamente de Stoll – A casa (La casa muda, 2010, Gustavo Hernández) e Réus (Reus, 2011, Pablo Hernández, Alejandro Pi e Eduardo Piñero) são os melhores exemplos – pois Hiroshima não entusiasma.

Acompanhamos o dia de Juan Andrés Stoll preso no entediante limite de sua própria existência. Do trabalho noturno na padaria, retorna para casa, onde mora apartado da casa da família, e tem por obrigação alguns serviços domésticos. Tímido, retraído e introspectivo seriam adjetivos não distantes da sua personalidade. Porém, há algo mais a bloquear Juan do restante do mundo. Em um primeiro momento, uma cena parece bastante reveladora. Ao organizar um dos cômodos da casa à pedido da família, Juan se depara com rolos de filme. Neles estão não apenas toda a sua infância, mas a memória de uma família que, como em toda memória, surge feliz e perfeita. Nas cenas seguintes, o passado é vendido em uma feira pela qualidade da justificativa: já não é possível reconhecer quem são aquelas pessoas. O peculiar desapego rende-lhe algum dinheiro que somado aos trabalhos como modelo de perfil ajudam-lhe a manter a banda e a namorada, tudo sem qualquer pretensão.

Se a direção de fotografia em Super 16 de Arauco Hernández Holz, responsável pela foto de Gigante (2009, Adrián Biniez), e a montagem de Fernando Epstein e Pablo Stoll apresentam qualidades inquestionáveis, o que mais chama a atenção é a inusitada escolha por expressar os diálogos na forma de textos, como nas primeiras produções sem som. Por isso, e por manter a trilha e o som ambiente, o filme leva o epíteto de “musical silencioso”. Como recurso original, a transformação dos diálogos em texto se encaixa inteligentemente na narrativa. Por um lado gera o efeito cômico (que agora temos certeza ser próprio de Stoll,  enquanto o pessimismo desenfreado seria próprio de Rebella, a quem o filme é dedicado) e, por outro, reflete na forma o modo de comunicação possível dentro do mundo particular de Juan. Isolado internamente, como muitos de sua geração, apenas as músicas de seu discman o acompanham.

O que me parece equivocado, porém, seria tomar Hiroshima como (mais) um filme existencialista. É verdade que se pode centralizar a questão do “sentido” da vida em ambos, no entanto, enquanto a corrente de pensamento francesa busca no sentido um artifício para nortear a vida, o personagem de Stoll vaga desafortunadamente como as últimas horas de Pierre Wesselrin (Jess Hahn) em O Signo do Leão (Le signe du Lion, 1962, Eric Rohmer) ou como Willie (John Lurie) – na verdade, qualquer personagem de qualquer filme do diretor americano Jim Jarmusch – em Estranhos no Paraíso (Stranger Than Paradise, 1984, Jim Jarmusch , cuja influência salta aos olhos. Ao ter desistido de qualquer busca, Juan parece comprometido em resignar-se diante do nada e, deste, nada produz. Prova disso não são as atividades inócuas que realiza no tempo livre, mas a completa indolência com que responde aos estímulos do mundo. Nenhuma responsabilidade lhe cabe, nenhuma idéia lhe seduz. Imagem perfeita é a da partida de futebol no terceiro ato do filme. Após marcar um dos gols, o protagonista pergunta o placar. A resposta indica disputada e que começou há muito tempo. “E por o que jogamos?”, indaga Juan.  “Não sei”, responde o companheiro de time. Este é o espírito de Juan e dos garotos mortalmente entediados na Montevideo de 25 watts. Eles cresceram e com eles, toda uma angústia, uma ausência.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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