Heavens Above
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Srdjan Dragojevic
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Nebesa
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2021
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Sérvia / Alemanha / Macedônia / Eslovênia / Croácia / Montenegro / Bósnia
Crítica
Leitores
Sinopse
Numa comunidade que passou mais de 50 anos sobre o regime comunista, as religiões começam a ser aceitas. Neste período, três milagres testam as crenças dos moradores e a aceitação do desconhecido: um homem acorda com uma auréola na cabeça, um prisioneiro é transformado num bebê, e uma nova forma de arte parece saciar a fome das pessoas em situação de rua.
Crítica
“Você é um santo”, afirma a esposa Nada (Ksenija Marinkovic) ao marido Stojan (Goran Navojec). “Teu pai é bom demais para esse mundo”, comenta uma vizinha para a filha do casal. De fato, após um choque elétrico, este sujeito bondoso não adquire poderes mágicos, como numa produção de super-heróis, mas uma grande auréola sobre a cabeça. Assustado, ele tenta esconder e arrancar o objeto, sem sucesso. Em um país como o Brasil, o milagre implicaria na provável louvação dos vizinhos, no uso político da parte de religiosos oportunistas, e talvez em alguma exploração capitalista, a exemplo da cobrança de ingresso para as pessoas beijarem a mão do sujeito agraciado. No entanto, esta coprodução entre Sérvia, Bósnia, Croácia, Montenegro, Macedônia, Eslovênia e Alemanha imagina um território acostumado ao comunismo, e contrário às manifestações espirituais. Por isso, o surgimento do halo luminoso provoca tudo, menos felicidade: Stojan é observado como se portasse uma doença contagiosa. O homem se sente sujo, amaldiçoado, um “mau comunista” – logo ele, que sempre lutou junto aos operários e seguiu as diretrizes do partido. O herói se torna o equivalente, nas sociedades cristãs, à figura do ateu pouco confiável. Heavens Above (2021) investe na corrosiva comédia de costumes, brincando com símbolos e comportamentos sociais.
A narrativa se divide em três capítulos, organizados por milagres e linhas temporais. “Pecado (1993)”, “Perdão (2001)” e “O Bezerro Dourado (2026)” são os títulos das histórias semi-independentes, movidas pelo choque diante da graça divina. Ao invés de comemorarem a ação de um ser superior, os indivíduos confrontados ao sobrenatural condenam os recompensados. Se Deus é uma ilusão e milagres constituem mera fantasia, a presença de um homem coroado por uma auréola e de um prisioneiro transformado em bebê produz mais desconfiança do que admiração. O humor decorre justamente da condenação de qualquer elemento transcendental: o incompreensível se converte em algo monstruoso, corrupto. Diante de um bebê preso na cela, o guarda grita: “Você não me engana! Continua sendo o meu detento!”. A extrema racionalidade face ao imponderável permite traçar um paralelo interessante com os nossos tempos, quando parte considerável da população acredita em promessa de padres, pastores e políticos religiosos, mas desconfia da eficiência das vacinas e do aspecto esférico do globo terrestre. Na comédia, os personagens aceitam somente aquilo que lhes é comprovado e descrito enquanto tal, em oposição à contemporaneidade onde negacionistas abraçam a versão do real que lhes convém. Trata-se de formas equivalentes, embora diametralmente opostas, de cegueira seletiva.
A premissa inusitada permite ao diretor e psicólogo Srdjan Dragojevic brincar com o avesso do machismo, da xenofobia, da masculinidade e da virtude. Para perder a auréola, a esposa acredita que o marido precisa cometer pecados, de modo que Deus o prive do benefício. Stojan é obrigado pela mulher ignorante a beber álcool, comer em excesso, exercitar a preguiça e fazer sexo com a melhor amiga, para provocar a cólera divina. “Pode me bater, se acha que vai ajudar”, oferece a filha gentil. O discurso promove uma caricatura sangrenta da crença e da descrença, atacando qualquer doutrina radical. O primeiro capítulo, em particular, mais extenso e bem desenvolvido que os demais, sublinha a artificialidade destes códigos de conduta: para o cineasta, tanto a fé em Deus quanto o ceticismo absoluto constituem práticas antinaturais que aprisionam os indivíduos ao invés de libertá-los. Para o autor, a sociedade pós-comunista saiu de uma tirania para entrar em outra: antes, sofriam com as regras draconianas do partido, e em seguida, com o moralismo castrador do cristianismo. No fundo, a narrativa defende a laicidade, determinando que nenhuma crença ou descrença deveria se converter em política pública, e quanto mais diversos forem os componentes de um grupo, melhor. Por isso, os milagres-maldições recaem sobre figuras marginalizadas: o homem bondoso demais, considerado tolo pelos vizinhos; o pintor acometido de doenças mentais e os moradores em situação de rua. A verdade virá da boca das crianças e dos loucos, diz o provérbio popular. Os protagonistas se encaixam, em maior ou menor medida, em ambos os critérios.
Dragojevic se diverte tanto quanto o seu elenco ao criar este mundo fabular. O halo luminoso na cabeça de Stojan serve de fonte diegética para a fotografia: nos planos subjetivos do protagonista, vemos seus interlocutores iluminados no escuro. Quantos personagens dotados de luz própria o cinema de ficção já ofereceu? Na tentativa de arrancar o acessório do corpo, este anjo contemporâneo bate a cabeça, sangra, se cobre de marcas. Depois, passa a frequentar prostitutas. Uma comicidade simples decorre da ideia de um sujeito divino efetuando práticas condenáveis pelos dogmas cristãos, “obrigado” a agir de maneira truculenta para voltar à vida normal. A direção de arte imagina casas exageradamente pequenas, parte de um vilarejo de refugiados sujo e afastado, em oposição ao mundo asséptico dos ricos, com seus apartamentos luxuosíssimos, tão brancos que “parecem instituições psiquiátricas” nas palavras de Gojko (Bojan Navojec). Aos poucos, o discurso se afasta dos preceitos explicitamente religiosos para efetuar uma sátira das desigualdades e dos preconceitos seculares. Em diversos aspectos, remete a The Square: A Arte da Discórdia (2017), outra obra de múltiplos alvos, dentre os quais o mundo arrogante da esquerda privilegiada que frequenta exposições e consome arte de elite.
Em contrapartida, conforme amplia seu escopo, Heavens Above perde o caráter incisivo para se transformar num deboche tão amplo da contemporaneidade que não atinge, de fato, nenhum alvo específico, nem incomoda algum setor em especial – sejam os comunistas ou capitalistas, ateus ou cristãos, progressistas ou conservadores. No terceiro segmento, a descoberta de uma “arte nutritiva”, que sacia a fome das pessoas pelo simples gesto de olhar (os atores mastigam o ar enquanto admiram os quadros), se converte numa curiosidade a ser justificada pela ciência, ao invés de um gesto evidente dos céus. Se Pecado (1993) era focado num personagem único, controlando o ponto de vista, Perdão (2001) e O Bezerro Dourado (2026) partem para um olhar mais distanciado e coletivo. Desconhecemos o sentimento destas pessoas, cuja psicologia se restringe às descrições efetuadas por terceiros. O aspecto incisivo da trama envolvendo Stojan se dilui: os segmentos se tornam progressivamente sérios e surrealistas, contrastando com a comédia acessível da parte inicial. Embora os atores sejam aproveitados em episódios seguintes, eles perdem sua força devido ao protagonismo pulverizado. A auréola constituía um motor suficiente para os conflitos, podendo ser desenvolvida de inúmeras formas. Ora, a guinada para o pintor e os mendigos enfraquece o resultado, que tenta equilibrar mais linhas narrativas do que consegue desenvolver. Entretanto, cabe valorizar a iniciativa de um cineasta que peca (o termo soa apropriado aqui) por excesso de ambição, evitando uma aposta segura demais. O diretor observa as sociedades pós-comunistas com interessante senso de absurdo, utilizando a comédia enquanto forma de estranhamento e reflexão.
Filme visto online no Festival Internacional de Locarno, em agosto de 2021.
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