Crítica


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Sinopse

Na megalópole de Xangai existe o 6 People's Hospital, uma gigantesca instituição pública que atende emergências e realiza alguns dos procedimentos mais arriscados do país. Camponeses, operários e famílias abastadas se cruzam pelos corredores lotados, em busca de atendimento e resposta às suas dores. Em meio à dificuldade de pagar pelas internações e procedimentos, desenham um retrato da China contemporânea.

Crítica

A câmera se envereda pelos corredores do hospital. Alguns familiares dormem nas cadeiras, outros choram ou fazem ligações. Macas passam de um lado para o outro, médicos correm entre diferentes salas enquanto um painel gigantesco chama o número das dezenas de pacientes esperando atendimento. H6 (2021) mergulha no cotidiano do 6 People’s Hospital, em Xangai. Por um lado, existe evidente senso de urgência: a montagem privilegia casos graves de operações arriscadas e crianças correndo risco de morte. A imagem está atenta a qualquer barulho ou grito no corredor. Por outro lado, a narrativa se desenvolve com o tempo: a diretora YeYe passa diversos meses enfiada nos quartos, salas de espera e corredores, a ponto de eleger alguns personagens recorrentes. A duração do processo se torna fundamental ao documentário: ao invés de detectar pessoas em situação de crise, a cineasta passa a acompanhá-los, entendendo de que maneira os quadros clínicos evoluem, e como as vidas são impactadas pelas doenças e acidentes ao longo dos meses. Em primeiro lugar, a cineasta adota a importante posição de cúmplice dos familiares e internos, assumindo o ponto de vista deles, sem julgamento nem exploração da dor alheia para o entretenimento do espectador.

Em segundo lugar, a autora se demonstra uma exímia observadora. Teria sido simples posicionar a câmera em algum canto e aprender o caos à frente, nos moldes da telerreportagem. Ora, o filme chinês possui a capacidade preciosa e rara de chegar muito perto das pessoas, sem deixá-las constrangidas nem modificar comportamentos por causa do dispositivo cinematográfico. Em outras palavras, o olhar se situa simultaneamente perto e longe: perto, porque investe em close-ups das pessoas nas macas, com os crânios perfurados e mãos machucadas, além de se encontrar dentro da UTI, ou junto aos leitos de madrugada, quando uma criança chora com saudades da mãe. Longe, porque não aparenta incomodar o funcionamento do hospital, evitando recorrer às entrevistas artificiais e produzir conflitos para a necessidade do filme. Neste caso, é o cinema quem se ajusta ao mundo – quando um homem sai rapidamente da recepção em busca de um lugar para carregar seu cartão corporativo, a equipe corre atrás dele. As múltiplas reações recebem tratamento idêntico em respeito e tempo, o que vale tanto para os personagens mais emotivos e desesperados quanto para aqueles conformados e outros que preservam o bom humor, “porque eu canto o tempo inteiro, e não tenho medo”. “Quer que eu cante pra você?”, pergunta um homem viúvo ao amigo, pelo telefone.

Calmamente, alternando momentos tensos com outros de contemplação e poesia (um saco preto voando pelos ares, um senhor ferido correndo com dificuldades atrás do ônibus), H6 oferece um riquíssimo painel humano. YeYe dispensa letreiros explicativos e evita conduzir personagens para atingir os temas desejados. As complexidades da China contemporânea se encontram lado a lado, no interior do hospital. Camponeses paralisados após caírem de uma árvore, uma garotinha de cinco anos internada gravemente por um acidente de trabalho (ela vende frutas no meio da estrada), “assistentes de enfermeira” superfaturando os cuidados médicos e dezenas de episódios semelhantes explicitam a configuração de um país rico e desigual. A opressão de gênero, as diferenças entre gerações, o trabalho forçado, o valor da honra e a presença curiosa de um Estado controlador, porém nem sempre provedor, são alguns dos temas ilustrados pelas histórias familiares. A política se reflete na vida dos cidadãos, sem a necessidade da menção a qualquer presidente, partido ou corrente ideológica precisa.

Neste sentido, a direção apresenta méritos notáveis: a artista propõe uma discussão política repleta de nuances, evitando o simples caráter de denúncia tão propício ao tema, sabendo quando se ater à instituição do título e quando sair pelas ruas, acompanhando os personagens na volta para casa ou nos dilemas financeiros. Existe uma linha tênue entre o humanismo e o paternalismo, ou entre o ponto de vista sociológico e a lamentação conformista, mas a direção se mantém coerente, próxima dos sentimentos alheios em estado bruto ainda que evite a armadilha das decorações estéticas via trilha sonora chorosa nos instantes dolorosos ou zoom em rostos lacrimejantes. Pelo mergulho na dinâmica cotidiana de uma instituição social, conferindo igual atenção aos diretores, médicos, faxineiros, atendentes da recepção e pacientes, remete ao cinema de Frederick Wiseman, porém com maior dedicação ao relevo emocional. YeYe destrincha este ambiente sem uma mensagem prévia a passar: ela não passa meses no hospital para comprovar uma tese ou ilustrar uma hipótese prévia (a exemplo de Sicko: SOS Saúde, 2007, de Michael Moore). Ela está disposta a trabalhar com aquilo que se apresentar à sua frente, num gesto de respeitosa abertura ao real.

A dinâmica cinematográfica proposta por H6 repousa sobre um equilíbrio estético e narrativo. A diretora confia tanto nas ferramentas do cinema realista e social (câmera na mão, luz natural, sons ambientes, personagens entrando e saindo de quadro) quanto no potencial de um cinema lúdico (o pai cantando para o filho do lado de fora do quarto, as elipses marcadas por trilha sonora jocosa, o exercício físico praticado pelo ortopedista de manhã). Assim, o resultado não se torna excessivamente sombrio ou duro, encontrando preciosas variações de tom durante a narrativa, e percebendo que existe tanta dor quanto demonstrações de afeto sincero no setor de urgências. Com frequência, a saúde é condicionada ao dinheiro: o homem paralisado deveria aceitar a arriscada e custosa cirurgia, sabendo das privações que a família sofrerá? Deveria aceitar os cuidados da assistente, custando mais do que o previsto? Em contrapartida, inexistem catarses capazes de produzir o choro do espectador: nenhum episódio se encaminha inevitavelmente à morte. A autora acena às possibilidades de escolha e de mudanças (vide a cena final), sugerindo que os familiares e a câmera estarão de volta no dia seguinte, no mesmo corredor, na mesma maca. Ela privilegia uma situação crônica à eleição de casos capazes de representar o todo. O olhar se mostra generoso, abrangente e socialmente questionador.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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