Godzilla Minus One

Crítica


8

Leitores


3 votos 7.4

Onde Assistir

Sinopse

Num Japão devastado após a Segunda Guerra Mundial, tudo fica ainda mais crítico quando uma criatura gigantesca e brutal surge das águas dispostas a destruir tudo o que vê pela frente. Um soldado atormentado pela culpa assumirá a missão de combater o temível Godzilla.

Crítica

Há alguns anos Hollywood voltou a se interessar por criaturas gigantes ameaçando a supremacia humana na Terra. Nessa toada, King Kong e Godzilla ganharam evidência – eles chegaram até a trocar umas porradas em Godzilla vs. Kong (2021). No entanto, o daikaijū que personificou o trauma nuclear japonês depois das bombas lançadas pelos Estados Unidos sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki é oriental de nascimento (apareceu pela primeira vez em Gojira, 1954). Com Godzilla Minus One o Japão prova que está muito à frente dos EUA no quesito “fazer filmes de Godzilla”, especialmente porque não trata esse icônico monstrão apenas como um predador enorme, atribuindo a ele uma natureza próxima ao sublime, quase como um Deus da destruição. No entanto, o protagonista desse melodrama de guerra é Shikishima (Ryunosuke Kamiki), soldado kamikaze que deixa de lado a sua missão suicida e dá um jeito de aterrissar na ilha de manutenção durante a Segunda Guerra Mundial. Essa fuga do dever recai sobre ele como um peso moral grande demais para ser carregado, especialmente dentro de uma cultura em que a honradez é um atributo fundamental da cidadania. Não bastasse isso, a sua “covardia” ganha ainda mais camadas quando ele não consegue disparar contra Godzilla, assim deixando outros militares à mercê da criatura. Na sociedade japonesa, Shikishima é convidado a se sentir pária.

20231211 godzilla minus one papo de de cinema 2

Ao retornar à capital Tóquio, o protagonista se depara com uma vizinhança destruída, seus pais mortos, a vizinha ressentida por sua deserção e uma dupla de desamparadas com a qual constrói uma família improvável. Noriko (Minami Hamabe) assumiu a responsabilidade de criar uma bebê que perdeu pai e mãe nos bombardeios da Segunda Guerra e encontra em Shikishima uma companhia nessa árdua etapa de reerguimento. Godzilla Minus One trabalha habilmente os elementos melodramáticos de sua trama, deixando contratempos, impossibilidades e dilemas à flor da pele, enfatizando nesse ínterim a tragédia da orfandade que conecta diversos personagens e, além disso, retratando um país que precisa juntar os cacos que restaram (física e moralmente falando). Nesse cenário repleto de escombros, miséria e emocionais estraçalhados, Godzilla aparece como uma manifestação bestial da natureza que contempla a perversidade humana. Depois de atacar uma ilha, talvez para conseguir alimento, o daikaijū é despertado novamente por um teste nuclear realizado no Atol de Bikini (pelos Estados Unidos), tornando-se portador também da temida energia radioativa. Então, além de ser besta-fera imponente capaz de dizimar cidades inteiras, seja com a sua fúria gigante ou mesmo com o raio de calor expelido do corpo, ele ainda deixa um rastro da obra humana pensada para causar destruição em massa.

Godzilla Minus One remonta a um contexto social muito triste, o do pós-guerra. Nele, o Japão é largado à própria sorte diante da ameaça de Godzilla porque os Estados Unidos preferem lavar as mãos a dar qualquer passo em falso na Guerra Fria mantida com a União Soviética. Além disso, há um personagem coadjuvante que sempre faz questão de vomitar a sua indignação contra o comportamento do governo japonês que propaga a ética como motivo suficiente para soldados cometerem suicídio ritualístico em nome da pátria, mas é incapaz de lidar com as próprias responsabilidades. E dentro dessa moldura que contém oportunas alusões e alegorias políticas, o cineasta Takashi Yamazaki dá uma aula aos colegas hollywoodianos no quesito “mostrar como Godzilla pode ser imponente e assustador”. Sempre que o monstro aparece em cena há a promessa de momentos verdadeiramente tensos, nos quais a fúria da natureza desconhecida se consolida como um obstáculo para o Japão pós-guerra deixar cicatrizarem as suas enormes feridas. As batalhas humanas contra Godzilla são muito bem filmadas, contém a energia e a perícia técnica apropriadas para encarar a ameaça descomunal como componente comovente desse painel melodramático. Mesmo que a criatura seja toda construída em CGI (computação gráfica), possui texturas aparentemente orgânicas. Méritos dos ótimos efeitos digitais utilizados.

20231211 godzilla minus one papo de de cinema

Outro item narrativo fundamental para o êxito de Godzilla Minus One é o som. Do rugido de Godzilla ao ruído das embarcações e aeronaves de guerra, passando pela trilha sonora, tudo é bem pensado e orquestrado para conferir ao filme o clima de constante tensão. Takashi Yamazaki não perde de vista a iminência dos ataques do daikaijū, mas enfatiza (com veemência) a tragédia pessoal de Shikishima, alguém que não consegue continuar a vida de onde parou, pois a guerra tirou dele coisas demais. No horizonte desse soldado torturado pela culpa (de ter sobrevivido, de ter rompido com a ética dos kamikazes, etc.) a sofreguidão que não o autoriza a formar uma nova família. Ainda dentro do aspecto melodramático (que aqui combina bem com a ficção científica), cabem os perdões restauradores, as irresponsabilidades bem-vindas, as reviravoltas emocionais e os reencontros improváveis. Quando a história pede ação, o realizador imprime voltagem até mesmo em situações que atendem a lugares-comuns do filme de guerra. Tão logo Godzilla esteja à espreita como um predador, ele elabora muito bem o drama humano da população que perdeu quase tudo, inclusive as suas referências morais. O resultado dessa combinação bem-sucedida é um longa com a qualidade dramática e de ação ausente nas vezes em que Godzilla virou estrela de Hollywood. Nada como voltar à essência para fazer a diferença.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *