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Sinopse

Os pais da adolescente Catherine estão se divorciando. Essa tensão media seu crescimento/amadurecimento nada romântico, marcado por desventuras ambientadas na singular cena grunge dos anos 1990.

Crítica

Catherine (Kelly Depeault) é uma adolescente em busca de referências. Dentro de casa, assiste às brigas constantes entre o pai e a mãe, que às vezes terminam em agressão física. Na escola, aproxima-se do grupo de estudantes usuários drogas e rebeldes contra qualquer regra definida. Aos poucos, a adolescente comportada ignora a casa, a escola, os planos para o futuro e passa a viver no tempo presente, revoltando-se se contra a falta de perspectivas. Enquanto lê “Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada, Prostituída...”, óbvia referência para sua decadência pessoal, encontra uma forma de liberdade no flerte com a morte. Experimentando cada vez mais drogas, ela começa a ver pessoas perto de si morrerem. A Deusa dos Vagalumes acompanha este ponto de vista impulsivo, numa mistura de prazer e torpor, de ingenuidade infantil com desejo de autonomia.

A Deusa dos Vagalumes poderia ser considerado uma cautionary tale, ou seja, uma fábula de prevenção sobre os riscos das drogas entre os jovens. No entanto, possui o mérito de não julgar moralmente a sua protagonista. Catherine jamais se transforma no modelo de comportamento perigoso ao espectador – tanto a diretora Anaïs Barbeau-Lavalette quanto a escritora Geneviève Pettersen, autora do livro original, enxergam na protagonista um instinto de sobrevivência, uma escapatória à opressão da vida doméstica. Ao invés de moralista, o discurso poderia ser encaixado mais facilmente no determinismo: adolescentes recorrem a uma vida de perdição por não possuírem uma estrutura familiar sólida. A cada nova experiência limítrofe da estudante, ela volta em casa a encontrar as brigas violentas dos pais, que jamais se relacionam de qualquer outra forma diferente do enfrentamento. Com o acréscimo de um racismo despejado sem muito desenvolvimento (“Esse teu sangue nativo te faz agir contra mim!”), o roteiro constrói uma personagem complexa cercada por caricaturas perigosas, à beira do maniqueísmo.

Por mais que a situação da garota se deteriore, a jornada não constitui propriamente uma gradação, ou seja, um aumento progressivo dos riscos até a explosão. O senso de naturalidade balanceia o teor frontal do sexo e das drogas: Catherine vive dia após dia, sem planos nem objetivos, e a câmera limita-se a observá-la, fechando os enquadramentos no rosto, movendo-se levemente de um lado para o outro, como se constituísse o olhar de mais um jovem dentro do grupo. O tom de cumplicidade, combinado com as cores pouco contrastadas e a sucessão de canções pop torna a experiência agradável, além de potencializar o impacto das cenas de sexo e overdose por contraste. Das ações aos cenários e figurinos, apresenta uma produção impecável, com jovens atores bem escolhidos e dirigidos dentro de uma trama de ritmo preciso. Nenhuma cena se arrasta mais do que o necessário, tampouco se interrompe antes de completar seu potencial dramático. Existe um profissionalismo e uma elegância notáveis no acabamento da obra.

No entanto, o resultado alimenta a impressão de uma forma de cinema datada. Os filmes sobre jovens experimentando drogas sem limites por falta de bases familiares já foi explorado diversas vezes através dos mesmos recursos: a câmera móvel, colada ao rosto, acompanhando cada gesto da protagonista; as poesias de desfoques e câmeras lentas durante as viagens de entorpecentes; a sensação de liberdade de colocar o braço para fora do carro ou andar na traseira da bicicleta de alguém. Para cada cena bela e inventiva – o banho forçado de mangueira ao amanhecer, a mão pousada no peito do companheiro após o sexo – existem outros instantes que se tornaram clichês da “descida aos infernos” da juventude transviada. O resultado não apenas situa sua trama nos anos 1990, ele também soa como um (bom) filme dos anos 1990, mas ainda assim, descolado das experiências estéticas atuais. Talvez este seja um incômodo essencial diante da produção: encontrar, vinte e cinco anos depois de Kids (1995), vinte e três anos depois de Vida Sem Destino (1997) e dezessete anos depois de Aos Treze (2003), um filme que se comunica basicamente da mesma maneira, sem alcançar a potência de seus antecessores.

Caberia à cineasta estabelecer uma ponte entre a juventude grunge dos anos 1990 e a adolescência ultraconectada, individualista e apolítica dos anos 2010/2020, ou apontar em que sentido o cinema junkie-naturalista daquela época se conecta com as formas mais contemporâneas de representar as novas gerações (vide Boyhood: Da Infância à Juventude, 2014, Tangerine, 2015, ou Corra!, 2017, para citar alguns exemplos). Em outras palavras, sobra competência técnica, porém falta ousadia para retratar, justamente, pessoas que fugiram às regras e viveram sem respeitar limites. Ao menos, a jornada de Catherine evita os excessos de reviravoltas típicos das adaptações literárias, enquanto permite ao espectador se deparar com talentos como Kelly Depeault no papel central, e sobretudo o ambíguo Robin L’Houmeau como Keven, um dos personagens mais interessantes pela capacidade de circular dentro e fora do grupo de adolescentes drogados. Aos fãs do livro, o projeto deve representar uma adaptação sólida do coming of age adorado pelos canadenses.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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