Crítica


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Sinopse

Durante o período conturbado da Guerra Fria, quatro enxadristas georgianas revolucionam o xadrez. Elas se tornam símbolos soviéticos de emancipação feminina. Mas, na atualidade, o resta do legado dessas vanguardistas?

Crítica

É provável que a maioria dos brasileiros desconheça a força da Geórgia dentro do xadrez mundial. Durante quarenta anos, o país teve as melhores enxadristas de todo o circuito internacional, sucedendo umas às outras nas principais competições. As georgianas chegaram a vencer as medalhas de ouro, prata e bronze numa mesma edição das Olimpíadas de Xadrez. A partir deste fato excepcional, a diretora Tatia Skhirtladze poderia escolher diversos pontos de vista para acompanhar as trajetórias das campeãs Nona Gaprindashvili, Nana Alexandria, Maia Chiburdanidze e Nana Ioseliani: as dificuldades da vida profissional, o treino para se tornarem mestras no esporte, a diferença em relação ao status conferido às disputas masculinas, o declínio das carreiras. A percepção da Geórgia enquanto potência também remete a um passado comunista muito distante da realidade contemporânea do país. Os tabuleiros de xadrez abrem portas para se discutir a política, a moral e os costumes, a história e a desilusão com a queda da utopia comunista de cinco décadas atrás.

No entanto, a cineasta opta por um ângulo bastante particular: o legado cultural e a presença das quatro celebridades no imaginário popular. O roteiro ignora os traços de personalidade de cada uma, suas trajetórias específicas em torneios, seus pontos fortes ou fracos nas partidas. Para o filme, é muito mais interessante descobrir uma geração repleta de jovens meninas batizadas de Nona, Nana e Maia, seja por opção dos pais, seja por imposição do Partido Comunista. Inúmeras cenas assumidamente artificiais trazem jovens mulheres se apresentando diretamente à câmera, e repetindo variações da frase: “Meu nome é Maia, e recebi este nome porque minha mãe adorava Maia Chiburdanidze”. Descobrimos que o dote das mulheres no casamento costuma incluir um tabuleiro de xadrez, e que diversas famílias ainda jogam entre si, dentro das casas, como um passatempo popular. Conhecemos o museu do xadrez, os campeonatos locais, os centros esportivos que valorizam a modalidade. O filme oferece provas suficientes da força desta prática na Geórgia, e de sua popularidade especialmente entre as mulheres.

Os melhores momentos de Glória à Rainha (2020) provêm da análise da propaganda comunista durante a Guerra Fria. A diretora resgata os vídeos institucionais das enxadristas na televisão, dissecando cena a cena, analisando as cores, a duração, a mensagem implícita em cada campo de flores ou passeio das campeãs com suas mães. Skhirtladze possui excelente capacidade para a interpretação de imagens, algo transmitido de maneira tão pontual quanto leve, ao limite do cômico. A diretora consegue observar a União Soviética enquanto uma construção não apenas política, mas sobretudo ideológica, onde o audiovisual ocupava posição central na disseminação de ideias. A maioria dos documentários se contentaria em expor este material e deixar as leituras a cargo do espectador, porém a jovem diretora deseja controlar o discurso e sua leitura, apropriando-se das gravações de décadas atrás e relendo-as com os olhos de uma georgiana da geração seguinte. Os olhares se confrontam e se completam dentro desta percepção de um país em evolução. O humor proveniente dos registros de arquivo diz respeito à distância estética em relação à sociedade daqueles tempos.

No entanto, chegando à construção de suas próprias imagens na atualidade, o filme demonstra dificuldade em sustentar esta potência. A diretora cola a câmera perto demais das enxadristas, quando conversam umas com as outras, deixando-as desconfortáveis e eliminando a espontaneidade. A reunião do quarteto num evento nacional traz um trabalho de iluminação e enquadramento tão intrusivo, colado aos corpos e rostos, que as mulheres se movem com dificuldade. Skhirtladze efetua ótimo trabalho ao detalhar a dissolução do bloco soviético, porém se priva de estudar o que ocupou o lugar dele. Para além da presença anedótica de dezenas de Nanas, Nonas e Maias, conhecemos pouco sobre a evolução do esporte, as novas gerações, as relações contemporâneas de gênero e a visão do xadrez pelos governantes atuais. Nota-se o medo de incomodar vozes opositoras, razão pela qual o passado comunista é evocado de maneira dissociada do presente. O espectador terá um panorama interessante deste passado longínquo, sem saber quais traços do regime se mantêm na Geórgia contemporânea.

Ao menos, Glória à Rainha traça um belo retrato do envelhecimento dos ícones. A percepção do quarteto de enxadristas sobre a queda de seu rendimento no esporte, e a constatação de que já viveram o melhor momento de suas vidas confere um aspecto agridoce à narrativa. As quatro ainda atuam em cargos de diretoria nas organizações esportivas, participam em campeonatos sênior e são reconhecidas nas ruas. No entanto, se veem confrontadas ao desaparecimento de suas imagens, ao condicionamento de sua vivência a um passado distante. O documentário oferece belas sequências de silêncio, contemplação e reflexão, como convém à representação do xadrez. Nestes instantes, transmite uma mistura de orgulho e cansaço por parte destas mulheres. Entretanto, evita conectar este incômodo com o sentimento de uma nova geração, ou com a percepção da juventude atual em relação à história georgiana. O projeto efetua um belo mergulho no passado, com montagem exemplar e bem cadenciada, porém se interrompe antes de utilizar estas lembranças para compreender o presente.

Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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