Crítica


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Sinopse

Numa Londres repleta de gangues, o chefe de uma das facções mais violentas é assassinado. Esse vácuo de poder ameaça a frágil trégua entre os tantos grupos do submundo.

Crítica

Gangues de Londres (2019) é um filme ambíguo em relação à violência. Por um lado, a mensagem é clara: “Não existem vencedores quando você brinca com armas”, afirma uma das frases finais, enquanto a abertura traz uma colagem de gangues se enfrentando, tiros sendo disparados e corpos caindo no chão. Esta colagem típica das conclusões dramáticas, quando diretores introduzem material de arquivo para confirmarem que a ficção desenvolvida até então corresponde à realidade, surge desde os primeiros segundos. Ao abrir a narrativa com tal discurso, o diretor Rapman (codinome de Andrew Onwubolu) condiciona a interpretação do espectador, sugerindo que devemos assistir à sangrenta história de Timmy (Stephen Odubola) e Marco (Micheal Ward) com um olhar de reprovação. O filme constitui um exemplo claro de cautionary tale, ou seja, uma fábula preventiva, alertando os jovens sobre o futuro que lhes aguarda caso sucumbam à tentação da vida do crime.

Por outro lado, o diretor demonstra notável prazer em tornar a violência sedutora ao público. A ampla maioria das cenas é marcada por poses e “atitude”: nesta trama simples em que gangues atacam umas às outras alternadamente – um rapaz mata o inimigo, e depois o melhor amigo deste parte para vingá-lo, e então o irmão do novo falecido decide acertar as contas etc. -, os personagens sempre carregam uma arma na mão, apontam para todos ao redor, proferem ameaças aos berros, depois erguem o capuz da jaqueta e caminham ameaçadoramente pelas ruas. O trabalho ostensivo de trilha sonora, montagem (com pessoas morrendo em câmera lenta) e de iluminação transforma a violência em espetáculo. O diretor de fotografia Simon Stolland abusa da câmera tremida na mão, imprimindo um tom visceral ao limite da caricatura. Tudo o que se compreende por linguagem gangsta, hip hop e mafiosa se reproduz à enésima potência neste drama de grandes duelos, paixões profundas e denúncias imediatas. Atualiza-se a estrutura das tragédias gregas para o Reino Unido dos dias atuais, com direito aos comentários do coro, aos interlúdios ritmados e ao deus ex machina quando conveniente.

Este último se traduz na figura de um narrador-rapper, espécie de anjo da guarda presente dentro das cenas, porém não percebido pelos personagens, cuja função consiste em lembrar ao espectador que a violência não leva a nada. Este personagem ao mesmo tempo intra e extradiegético possui um caráter curioso, visto que as falas do personagem não expandem o sentido das imagens, apenas a reiteram. Assim que um personagem morre – e são vários assassinatos nesta trama –, o rapper invisível entra em cena para dizer que a morte foi causada por tais motivos, que deixou várias pessoas tristes etc. A montagem inclusive repete imagens que acabamos de ver. Cada sequência possui sua própria explicação e flashback, como se tivéssemos dezenas de morais da história ao invés de uma única, além de um professor atento efetuando pausas regulares para se assegurar que o espectador compreende as explicações. Gangues de Londres soa ao mesmo tempo adulto e infantil demais: suas imagens são excessivamente explícitas para o público jovem, e demasiadamente simplificadas, enquanto visão do mundo e narrativa, para o público adulto.

“Tem muita violência nisso aí. Estou animado!”, comemora Timmy ao assistir a um filme na televisão. A frase resume a abordagem da direção como um todo. Rapman fica dividido entre reproduzir os códigos dos empolgantes filmes de ação do imaginário masculino e jovem (do tipo que, conscientemente ou não, defende a violência com as próprias mãos) e subvertê-los de modo crítico. Assim, termina por não perceber a contradição discurso-imagem de sua empreitada, nem o fato de que tamanho condicionamento da leitura impede o público de pensar por si próprio. Estão claros os vilões e os mocinhos, os mártires e as moças sacrificadas pela guerra alheia. O roteiro se articula em torno de polaridades nada sutis: enquanto o tímido Timmy faz amor lentamente com a menina que ama, Marco faz sexo selvagem com uma garota que mal conhece. Quando eles são garotos inocentes, discursam sobre serem gentis um com os outros. Já a versão gângster, anos mais tarde, traz ambos com os tradicionais capuzes, olhos sanguinários e falas carregadas de gírias e impostações agressivas. Trata-se de estereótipos, ou ainda de dualidades exageradas: o bem contra o mal, a inocência da juventude contra a perversidade da vida adulta, o caminho dos estudos e da família contra a vida das armas.

À primeira vista, a abordagem urgente sobre a violência poderia se assemelhar a projetos recentes sobre gangues de rua, a exemplo de Os Miseráveis (2019), de Ladj Ly. Ora, enquanto o filme francês se apoia numa construção social (os conflitos partem de motivos financeiros, políticos, raciais e hierárquicos), Rapman reduz seu escopo ao âmbito moral. A diferença de classe social entre os amigos-rivais não desempenha papel relevante na trama, e as famílias ou oportunidades de trabalho somem do jogo, assim como os líderes religiosos, políticos ou qualquer forma de autoridade externa. Os personagens são bastante semelhantes uns aos outros, mesmo intercambiáveis. O diretor concentra os embates na esfera das virtudes, do mérito e do caráter: você pode escolher entre ser uma boa pessoa ou se deixar levar pelo ódio, entre se tornar um improvável ativista antigangues ou ser morto em tiroteios. A incisiva abordagem do diretor não deixa de lembrar aquela mãe ou tia zelosa que repete aos pequenos “drogas são ruins, más companhias são ruins”, sem investigar por que as pessoas se unem às más companhias, por que praticam atos criminosos. Desprovido de indagações sobre causa e origem, responsabilidades estruturais e sociais, o discurso social se resume à estéril constatação de que a violência existe, mas não deveria existir.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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