Crítica

Adaptação do aclamado romance de Chico Buarque, Budapeste marca a estreia de Walter Carvalho como cineasta ‘solo’ em ficção – até então ele havia apenas realizado documentários ou participado como co-diretor. E o que se percebe é que este “vôo independente” foi cedo demais. Após ter comandado, ao lado de Sandra Werneck, uma das produções nacionais mais bem sucedidas dos últimos anos – Cazuza: O Tempo Não Pára, de 2004 – Carvalho, que possui um currículo invejável como diretor de fotografia, sendo o responsável pelas belas imagens de filmes como Central do BrasilLavoura Arcaica, Madame Satã, Amarelo Manga, Carandiru, A MáquinaChega de Saudade, dentre tantos outros, enquanto realizador só havia comandado filmes documentais, como Janela da Alma (com João Jardim) e Moacir Arte Bruta. E se o auxílio que sempre recebeu ao dividir estes créditos aqui representa uma indecisão entre vários possíveis caminhos, ao menos não afetou o que ele tem de melhor: a capacidade de representar histórias através de visões encantadoras.

Assim é Budapeste, o filme: um longa para ser aproveitado, sentido, sorvido com deleite. Não é uma trama convencional, corriqueira ou cotidiana. Os tempos se misturam, se intercalam, se sucedem e se transpõem. Mas se o discurso literário possibilitava com tranquilidade este jogo de aparente desordem, a tela grande do cinema complica um pouco a transposição. Como resultado temos uma obra confusa, por vezes entediante, que encanta pelos passeios por uma cidade bela, estranha e desconhecida, ao mesmo tempo em que nos afugenta pela aparente dificuldade em achar um norte, um foco a ser seguido.

José Costa (Leonardo Medeiros, de Feliz Natal, em completa entrega) é um ghost-writer, ou seja, um homem que ganha a vida escrevendo livros que outros assinam. Como vive no anonimato, mesmo quando seus trabalhos se revelam grandes sucessos, acaba se tornando um fantasma social, alguém que não possui identidade, ocupação ou entendimento. Sua esposa, uma atraente apresentadora de telejornal, está no sentido oposto, descobrindo uma fama súbita e muito almejada. O conflito entre eles é inevitável. Ao mesmo tempo o acompanhamos numa viagem à cidade-título para participar de um congresso profissional. Lá ele descobre uma outra mulher, uma nova paixão e inéditas aptidões: será que até poesia em húngaro fica mais atraente? Como uma existência refletida, acompanhamos o gradual desaparecimento de José Costa e o surgimento de Kosta Zsozé, sua versão européia. E tudo que dá certo num lado vai desaparecendo do outro. Mas seriam duas possibilidades de uma mesma pessoa? Ou estaríamos diante do real e do ficcional? Seria um deles apenas imaginação? Mas qual?

Budapeste brinca muito com a metalinguagem, com a força dos símbolos e o poder das imagens, nem sempre de forma eficiente. O roteiro, que chegou a ter sete tratamentos, foi escrito por Rita Buzzar (Olga), e talvez peque por tentar ser literário em excesso. Um pouco mais de ousadia e liberdade seria aconselhado, ainda mais por estarmos tratando de um enredo propício ao ilusório e criativo. Outro problema, e este bastante pontual, é o exagero de nudez feminina, na grande maioria das vezes exibida de forma gratuita e desnecessária. Deslizes que somente a experiência dentro do formato pode evitar. Num todo, por fim, este é um trabalho diferenciado e relevante, que tenta se comunicar com um público adulto e inteligente. E somente por esta ousadia já merece ser observado com um maior cuidado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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