Crítica


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Sinopse

Com a ajuda de um vasto material de arquivo, o cineasta tcheco Milos Forman é revelado em detalhes. Há o entendimento de como ele superou sistemas, tais como nazismo, para transformar a sua arte em resistência.

Crítica

Para o público dotado de pouco acesso ao cinema, é possível que o imaginário a respeito dos documentários corresponda precisamente a uma obra como Forman vs. Forman (2019). Não se trata de um filme mal executado nem mal finalizado, muito pelo contrário. No entanto, os diretores Jakub Hejna e Helena Trestíková acreditam que seu papel consista em explicar Milos Forman ao público. Eles partem da infância à morte, enumerando filme por filme, cronologicamente, avisando qual foi um sucesso e qual fracassou junto ao público. Mencionam as viagens, as mudanças de país, os casamentos, os Oscars. Ao final, incluem na tela uma sequência com o título de cada filme realizado pelo cineasta, ao lado de sua data, como se o espectador estivesse entrando numa página da Wikipédia ou do IMDb. Terminado o desfile dos letreiros, uma chama se apaga (porque o diretor morreu, entendeu?). A abordagem não é apenas óbvia, mas também escolar. Para a dupla de cineastas, o projeto serve como oportunidade para falar sobre alguém que estimam muito, porém sem refletirem ao certo sobre como deveriam falar sobre ele. Forman constitui um valor em si mesmo: ao abordar uma pessoa importante, o filme se tornaria importante por extensão.

Ironicamente, durante uma entrevista, o cineasta tcheco explica porque detestava a arte comunista oficial. “A arte não devia educar”, justifica. Ora, o documentário vai na contramão do ensinamento do biografado ao transformar os 80 minutos de duração numa aula introdutória ao trabalho do cineasta. Para quem estiver interessado em descobrir o percurso básico de Milos Forman, o projeto cumpre o seu papel. Para quem estiver interessado nas contradições de uma mente criativa, na gênese e desenvolvimento de um projeto cinematográfico, ou na inserção de suas obras dentro do mundo do cinema como um todo, talvez seja melhor procurar por livros e pesquisas mais ambiciosos. O filme evita a todo custo qualquer atrito em relação à visão elogiosa do diretor. Embora tenha praticamente abandonado a esposa e os filhos sozinhos na cidade natal, o diretor jamais é confrontado à responsabilidade paterna. Quando cita os fracassos de Procura Insaciável (1971) e Valmont: Uma História de Seduções (1989), a montagem rapidamente interrompe a explicação e passa a outro tema, no caso, ao próximo filme. Por que exatamente essas obras fracassaram? Que lição o criador tirou delas? Como as obras eram recebidas na República Tcheca, e quais referências elas trouxeram às produções internacionais desde então? Não se sabe. Forman se torna um fim em si mesmo.

Para uma obra intitulada Forman vs Forman, falta precisamente a noção do “versus”, de contradição: o diretor narra sua história do início ao fim, através de materiais de arquivo e de longas entrevistas concedidas ao longo das décadas. O cineasta descreve cada passo que deu, e pelo visto os diretores (e o público) precisam acreditar nele, porque não há qualquer relevo ou conflito neste discurso. O tcheco possuía boa oratória tanto em sua língua materna quanto no inglês, razão pela qual o documentário decide rechear a integralidade da experiência com narrações. Fala-se o tempo inteiro, sem respiro nem tempo para contemplação. Os trechos dos filmes, sempre muito curtos, não contribuem a representar o impacto que tiveram em suas épocas, nem para apresentar a um espectador que estiver descobrindo as obras pela primeira vez. Apesar das menções à censura na República Tcheca e às sucessivas trocas de regime, a obra permanece cortada de uma interconexão social – algo particularmente controverso para um cineasta progressista, tão preocupado com as liberdades individuais. As evoluções temporais ocorrem por milagre: “Então eu decidi filmar tal obra”, “Então tal filme não deu certo”, “Então eu me apaixonei pela história de Mozart e decidi filmar Amadeus (1984)”. Talvez as trajetórias mais pobres sejam aquelas compreendidas como uma sucessão de fatos estanques, nucleares, numa compilação de melhores momentos.

Há falas interessantíssimas do diretor, sem dúvida. Forman nunca teve freios para dizer o que pensava, mesmo quando emitiu opiniões controversas sobre a “liberdade excessiva” dada aos artistas tchecos pós-ditadura (outra fala sem reverberações na obra). Os principais méritos provêm do biografado, o que constitui um problema dentro um documentário autônomo. Ora, Hejna e Trestíková se tornam reféns do objeto de estudo: eles oferecem a imagem para o diretor dizer o que bem entender, quando quiser, conduzindo a narrativa por onde achar mais conveniente. A imagem produz uma relação referencial em relação ao som: quando Forman cita algum filme, vemos uma cena do filme; quando cita uma cidade, vemos a cidade; quando se lembra de uma pessoa, vemos a pessoa. A narrativa se torna ilustrativa, exemplar. Em última instância, os fragmentos de vídeos e making ofs possuem pouco valor em si mesmos: eles são apenas consideradas úteis a partir do momento que servem a acompanhar cada segundo da fala deste entrevistado, narrador e homenageado. Existe uma diferença fundamental entre apreciar Milos Forman e a apreciar o filme sobre Milos Forman. A dupla de cineastas não pode se esconder, de maneira tão pouco ambiciosa, por trás da figura imponente que pretendem destacar. Haveria maneiras muito mais criativas e arriscadas de homenagear uma figura igualmente criativa e arriscada.

Filme visto no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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