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Sinopse

Fernanda retorna à cidade de Goiás, antiga capital do Estado, de onde partiu quando era criança. Ela explica à família conservadora, muito ativa na política local, que seu objetivo é enterrar as cinzas da mãe adotiva, cumprindo um desejo da falecida. Na verdade, ela pretende conhecer a identidade de sua mãe biológica. Mas quando a investigação sobre o passado de Goiás ameaça as eleições locais, Fernanda se encontra em perigo.

Crítica

Fogaréu (2022) apresenta um olhar incisivo à história do Brasil. Ao observar as práticas corriqueiras na cidade de Goiás, antiga capital do Estado, a diretora Flávia Neves descreve a identidade do país como uma mistura de massacre indígena, coronelismo, descaso com o meio ambiente, estupros, patriarcalismo hipócrita, tráfico de drogas, homofobia, xenofobia, racismo, misoginia, etarismo, capacitismo, escravidão, corrupção política, internação compulsória de “loucos”, e certamente mais algumas mazelas esquecidas nesta lista. Ao longo de 100 minutos, o projeto confronta a modernidade à tradição: de um lado, encontra-se Fernanda (Bárbara Colen), jovem de aparência hippie, sexualidade indefinida, que defende os direitos humanos e o fim do nepotismo nas eleições da cidade. Do outro, existe o tio Antônio (Eucir de Souza), político de um partido conservador, de passado obscuro e ligado a diversas práticas de corrupção e exploração humana. Reflete-se o Brasil contemporâneo, dividido e antagônico, no interior de um casarão senhorial: enquanto os reality shows se divertem em colocar ideologias opostas numa casa para observá-las para digladiarem, o roteiro enfurna tio e sobrinha no mesmo espaço para melhor se atacarem. Eles se provocam, se ameaçam, se manipulam. As portas estão abertas, mas ninguém vai embora — de certo modo, é impossível abandonar o barco do qual ambos lados fazem parte.

O confronto político ocorre numa esfera de afronta direta, explícita. Fernanda constitui um destes casos em que a protagonista representa um alter-ego de sua criadora, verbalizando com eloquência aquilo que Neves parece pensar. Ela denuncia os abusos, os esquemas escusos,  a objetificação das empregadas domésticas. Num passe de mágica, a jovem também cede parte de sua herança aos adversários políticos do tio conservador, e promove a liberdade daqueles que apenas esperavam a sua chegada para adquirirem a força de se emancipar. Há muitas conveniências e coincidências no roteiro que, para acelerar o desenvolvimento dos conflitos, permite que sucedam uns aos outros de maneira vertiginosa. Por exemplo, três descobertas fundamentais ocorrem em cenas consecutivas, sem respiro: uma árvore pega fogo, um carregamento de cocaína é descoberto, um ruído é escutado no sótão. Os três elementos serão determinantes aos rumos da trama, e careceriam de uma oferta de contemplação ao espectador para que seus sentidos decantassem. Ora, a montagem e o roteiro têm pressa, na urgência típica das obras de denúncia social. Teria sido benéfico se concentrar em alguns desses temas internos em profundidade, desprezando os demais, porém o ponto de vista privilegia o mosaico de falhas estruturais e interconectadas. Não há muito tempo para reflexão: que o espectador colha os cacos, ao final da sessão, e chegue às conclusões sozinho.

A vontade de propor um discurso claro desperta diálogos explicativos até demais. “Às vezes é melhor ficar na superfície. Nem sempre é bom ir fundo”, ameaça o tio coronel. “Eles derrubam nós; a gente nasce de novo”, afirma uma líder indígena. “Eu rio com as novelas e choro com os palhaços”, confessa a protagonista, em tom grave. “Foi para você não fazer isso (trabalhar como empregada doméstica) que sua mãe te levou daqui”, explica Mocinha (Nena Inoue), uma das melhores personagens desta história. Ora, todas essas informações poderiam ser intuídas pelos silêncios, as expressões dos atores, os choques via montagem. Afinal, Fogaréu conta com a excelente Bárbara Colen no papel principal, capaz de observar duas mulheres exploradas com toda a dor, raiva e compaixão do mundo espremidas nos olhos. Eucir de Souza incorpora sorrisos e uma falsa cordialidade ao sujeito bruto; já Fernanda Vianna compõe a mulher ciente das atrocidades cometidas pelo marido, porém disposta a fechar os olhos às verdades inconvenientes. Nena Inoue transforma a configuração de Mocinha, que vai de vítima a resistente. Estes personagens são fortes, ambíguos, e plenamente capazes de transmitir os dilemas sem verbalizá-los. (Resta saber porque a determinada Fernanda aceitaria o passeio de carro com evidente tom de ameaça, e tomaria duas vezes as pílulas de que não precisa; mas passemos). A disposição do tabuleiro político é clara o suficiente para dispensar a tradução via frases de efeito.

Felizmente, a abertura à fantasia proporciona uma leveza benéfica ao dispositivo. O longa-metragem efetua a bela escolha de transformar o fogo num artifício simbólico, ao invés de literal. Aliás, sempre que apela aos objetos e metáforas, a representação cresce bastante: a descoberta de uma colcha bordada possui o efeito de um (ótimo) filme de terror, enquanto as bonecas transmitem um misto de familiaridade e monstruosidade pertinentes à jornada dos “bobos” de Goiás. A vingança mágica das minorias contra as forças do poder possui efeito mais potente do que uma revanche naturalista, pois se abre a múltiplos significados. “A verdade se encontra na boca das crianças e dos loucos”, afirma o ditado popular, materializado nesta fábula do Brasil profundo. Talvez a conclusão tenha algumas cenas apressadas e mal resolvidas, em termos de roteiro e de estética — o resultado condensa um material que respiraria melhor dentro de duas horas. Em contrapartida, é muito mais recompensador assistir a obras arriscadas e ousadas, do que aquelas buscando agradar com um discurso conciliatório — sobretudo em se tratando de um tema tão complexo. Em seu primeiro longa-metragem, Flávia Neves oferece um cinema sem concessões, movido por um furor que se torna tema da obra, tanto quanto as denúncias de nossas mazelas nacionais.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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