Crítica


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8 votos 6.2

Onde Assistir

Sinopse

O calor sufocante do verão bate em uma propriedade residencial estéril nos subúrbios de Roma. Muitas famílias que ali vivem não pertencem mais a lugar algum. Há uma misteriosa sensação de desconforto que pode explodir a qualquer momento.

Crítica

O filme italiano Fábulas Sombrias tem uma maneira curiosa de introduzir a sua narrativa. Um narrador em off, repleto de malícia e dotado de um vocabulário literário, afirma ter encontrado o diário de uma garotinha. Interessado nas histórias contadas, pensou em continuá-las de onde paravam. No entanto, suspeita que as narrativas fossem mentira. Assim, a obra promete se inspirar em “fatos reais sobre uma possível mentira, ainda que não sejam muito inspirados”. Instaura-se a ironia e a autoironia, além da fragmentação do ponto de vista: quem conta essas “fábulas ruins”? Quem está enxergando aquelas histórias, a partir de qual visão de mundo? Ao apostarem na estrutura do filme coral – a montagem intercala diversas histórias envolvendo crianças de um mesmo bairro – os diretores Damiano d’Innocenzo e Fabio d’Innocenzo hesitam entre qual postura adotar diante dos capítulos.

Esta indefinição conceitual se traduz numa indefinição estética. Por um lado, a dupla busca retratar a atmosfera fabular com imagens ultra estilizadas, envolvendo belas crianças brincando em câmera lenta, com o sol delineando seus cabelos sobre o fundo desfocado, enquanto gotas de água provocam efeitos de flare. Estamos próximos da idealização e assepsia dos comerciais de televisão, algo que poderia funcionar bem dentro de um registro irônico. No entanto, não é clara a ironia dos diretores diante da trajetória dos personagens – vide o sombrio tom da conclusão. Em paralelo, a câmera frequentemente opta por registrar cenas à distância, como a refeição terminando em engasgamento. A imagem está tão distante e alta, em contraplongée, que se assemelha a um olhar divino, de máximo distanciamento possível. Ora, como retratar as imagens de um diário, uma confissão em primeira pessoa, sem adotar de fato o ponto de vista dos personagens?

Fábulas Sombrias (2020) apresenta crianças em torno das quais diversos conflitos se passam, mas que nunca controlam as ações, nem buscam se impor contra elas. Em outras palavras, o roteiro cria um grupo de vítimas silenciosas de maus tratos familiares, abuso sexual e irresponsabilidade de professores, sem permitir que se compreenda de fato o que estão sentindo em cada um desses casos. Todos os garotos e garotas são tímidos, acanhados, ao lado de pais expansivos, violentos, ultrassexualizados. A ideia de “fábulas más” da dupla italiana provém especialmente do confronto forçado da infância com o sexo e a morte, o que vai desde uma experimentação naturalista destes temas (as crianças que sonham em fazer sexo, mas não entendem em que consiste o ato) até o absurdo herdeiro da comédia all’italiana (a mulher grávida que molha os biscoitos de um garoto no leite materno). O filme nunca sabe ao certo quando rir destas situações ou temer por elas. Neste ponto, encontra-se uma indefinição eticamente perigosa.

Quando ri, o discurso nunca o faz com seus personagens, e sim deles, este grupo de homens broncos e mulheres passivas demais. O projeto não adentra nem o mundo cão da denúncia social, nem a crônica sarcástica dos costumes, alternando entre os dois registros a partir de histórias que exigiriam um cuidado muito particular na abordagem de temas tão sensíveis. É incômodo ver duas crianças se despindo para fazer sexo, assim como testemunhar um garotinho pré-pubescente ser forçado pelo pai a fazer sexo com outra menina de sua idade. É ainda mais incômodo ver que o filme ora leva estes assuntos com seriedade, ora os enxerga de maneira jocosa, como uma grande brincadeira. Afinal, estamos diante de uma crítica grosseira da Itália machista, ou de uma cautionary tale sobre os perigos da vida adulta? Devemos rir por enxergar nestes maus pais alguém como nós, ficar preocupados pela incapacidade de nos identificar com eles? Os atores são instruídos a atuarem com profundo grau de seriedade, o que reforça tanto a gravidade das cenas quanto o possível absurdo das mesmas.

Ao final, essas fábulas não terão moral. Talvez a maior ironia venha da própria autodenominação de fábula imputada a histórias que não se prestam a esta estrutura, nem a esta leitura do mundo. Seria possível destacar bons momentos de atuação, ou instantes que comprovam uma grande produção luxuosa (o estouro da piscina inflável), o que talvez destine Fábulas Sombrias a uma exibição comercial. É possível que a dupla d’Innocenzo tivesse buscado elaborar seu próprio Relatos Selvagens (2014), com histórias mais sombrias, envolvendo tabus sociais menos aceitáveis do que o equivalente argentino. Todas as possibilidades que os diretores tinham em mente se revelam válidas em si: a sátira de costumes, a ironia estética, o suspense sombrio, o pesadelo da passagem à fase adulta. O problema se encontra na dificuldade em optar por apenas um desses caminhos. Após o explosivo desfecho, o público dentro do cinema não parecia particularmente chocado ou comovido, talvez por nunca ter se identificado com aqueles personagens desde o início. O diário de uma garotinha fictícia foi pervertido, afinal, pelo olhar indiferente dos adultos.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
5
Chico Fireman
6
MÉDIA
5.5

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