Crítica


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Sinopse

Depois de perder seu filho, uma mulher se distancia gradativamente do marido. Uma jovem cuida de seu pai doente, mas entre eles nunca antes existiu amor. Um criminoso apresenta seu herdeiro a uma vida de conhecimentos.

Crítica

A curiosidade diante deste projeto nasce de sua própria existência: trata-se de um raro longa-metragem produzido 100% em Ruanda, e chegando aos maiores festivais de cinema do mundo (na prestigiosa mostra Encounters, diga-se de passagem). Além disso, Father’s Day (2022) manifesta pretensões socioculturais amplas e ambiciosas: o diretor Kivu Ruhorahoza efetua um apanhado das relações de gênero, gerações e classes sociais em seu país através de três histórias independentes, conduzidas em paralelo. Ao longo de quase duas horas, expõe a corrupção dos poderosos, a opressão religiosa, os estupros e assédios contra as mulheres, a criminalidade reinante, o colapso do sistema de saúde em tempos de Covid-19. As relações de paternidade, explicitadas pelo título, dominam os segmentos: uma jovem hesita em doar parte de seu pulmão ao pai doente, que nunca demonstrou afeto por ela; uma mulher precisa fazer o luto do filho adolescente, morto num acidente na estrada, e um ladrão obriga o filho pequeno a aprender suas técnicas de trabalho para “ser homem de verdade”. O cineasta busca um retrato afetuoso dos relacionamentos, mas também severo em termos de organização social — ele critica os comportamentos repreensíveis, ao invés dos indivíduos que os praticam.

No entanto, o resultado fica aquém de suas nobres intenções. Primeiro, por motivos de ordem técnica e criativa: o longa-metragem possui diversas fragilidades de concepção e realização. A montagem, em particular, nunca sabe como nem quando encerrar as cenas, aplicando um fade aleatório durante interações em andamento. Ela teima em encontrar um ritmo fluido, e apesar de conectar duas subtramas no terço final, deixa uma das histórias avulsa, provocando certo ruído no conjunto. O trabalho com luzes naturais enfrenta dificuldades de nivelar os ambientes e imprimir uma saturação satisfatória às imagens “lavadas”, enquanto a captação sonora sofre desníveis graves — rumo à conclusão, uma conversa entre dois homens está tão abafada que aparenta ter utilizado um som defeituoso, sem a possibilidade de regravá-lo. Na cena da festa, a construção sonora impede o espectador de conhecer as músicas, espaços e características de um clube ruandês. Já as conversas ocorrem em planos e contraplanos simples de marido e esposa à mesa, com os rostos dos protagonistas ocupando a totalidade da imagem em formato próximo do quadrado (1 × 1,66). Esteticamente, o projeto cumpre com o mínimo necessário, a partir de uma linguagem acadêmica, para atingir um resultado considerado profissional — algo compreensível para uma nação desprovida de indústria cinematográfica.

Além disso, a condução da trama suscita questionamentos no que diz respeito ao trabalho dos personagens e dos conflitos. A extensa sequência de assédio à massagista Zaninka (Mediatrice Kayitesi) deixa uma postura dúbia quanto às consequências, tanto para a vítima quanto para o agressor: ela aparenta ter cedido à chantagem do cliente. Em paralelo, o suplício do pai doente em sua cama é acompanhado de planos de detalhe de crucifixos na parede e outros símbolos para reforçar a pena do espectador. O ponto de vista toma partido moral, nem sempre favoravelmente aos heróis: enquanto o pai morre, Mukobwa (Aline Amike) se diverte com a amiga, o que nos leva a condená-la pela atitude frívola; e depois de inúmeras cenas de maus-tratos com o filho pequeno, Karara (Yves Kijyana) será desculpado por se vingar de outro sujeito ainda mais perverso. A mãe em vias de lidar com a perda do filho escuta inúmeras vezes o bordão “A vida continua, siga em frente”, que lhe fere por ignorar suas dores íntimas. Entretanto, chegando ao final da jornada, o roteiro sustenta precisamente que, no caso da morte de um ente querido, o melhor seria apenas deixar os sentimentos de lado e continuar o nosso caminho. Não existe uma mensagem coesa, apesar de várias lições de vida e diálogos moralizantes: embora tome partido pelas mulheres inicialmente, reduzirá a autonomia das mesmas no final, perdoando o sujeito agressor. Na interpretação de um espectador brasileiro, dotado de valores distintos, o posicionamento político soa indeciso.

Talvez este seja precisamente o fator a considerar, neste caso: o olhar estrangeiro. Quanto menor for a nossa familiaridade com a cultura em questão, mais propensos seremos a julgar os acontecimentos e visões de mundo de maneira preconceituosa, ou pelo menos insensível. Existe, inversamente, a possibilidade de fetichizar a cultura distante de maneira paternalista, estimando que seria boa, ou desculpável, apenas por existir, isentando-a de responsabilidades éticas e artísticas. Isso equivaleria a não considerá-la equivalente às obras de países com cinematografias consolidadas, embora Father’s Day tenha sido exibido, no Festival de Berlim, junto a obras dos veteranos Bertrand Bonello, Arnaud des Pallières e Peter Strickland. Em outras palavras, a experiência diante deste filme representa um desafio, confrontando-nos inevitavelmente à visão branca e colonizadora. Ressalvas à parte, isso não deveria nos impedir de analisar o resultado, embora necessariamente envolto em algum grau de fetichismo da alteridade. Cabe ao crítico aprimorar seu olhar e conhecimento nestes casos, ao invés de se contentar com o aplauso acrítico por sua existência. Mas este texto se perde numa tangente. Em conclusão, Father’s Day busca efetuar um panorama extenso de uma sociedade em conflito, dominada por relações de violência sistêmica. O projeto se mostra capaz de perceber os problemas e apontar o dedo a comportamentos nocivos, ao invés de pessoas e grupos específicos. Além disso, revela-se incapaz de estudar as origens do problema, ou conceber eventuais maneiras (metafóricas ou concretas) de superação. O filme resta numa primeiridade: há problemas graves na Ruanda contemporânea. A partir disso, sabe-se lá como a arte ou a sociedade deveria prosseguir.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022. 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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