Crítica


5

Leitores


1 voto 8

Onde Assistir

Sinopse

Totalitarismo, panorama social atual, democracia e novas formas de comunicação. Tudo discutido e refletido por meio da interação entre bonecos.

Crítica

Você já deve ter visto esse filme antes: Rithy Panh, cineasta cambojano radicado na França, se propõe a uma análise dos maiores crimes contra a humanidade, partindo do genocídio no Camboja. Em Everything Will Be OK (2021), ele utiliza a animação em stop motion, com bonecos de argila representando cidadãos, soldados, animais e florestas vitimados pelos ataques — assim como havia feito em A Imagem que Falta (2013). No filme recente, ele se propõe a uma colagem de fragmentos de guerras mundiais, através de sobreposições, telas divididas e uma narração em off para costurar o discurso — a exemplo da estratégia adotada em Irradiated (2020). Caso fosse lançado no começo dos anos 2010, constituindo a primeira obra deste conjunto de documentários animados e experimentais, o resultado seria considerado inovador, surpreendente. Ora, aqui, Panh deixa a impressão de se repetir em termos de estética, discurso e objetivos. Ele relembra outro grande cineasta, Patricio Guzmán, responsável pelo monumental Nostalgia da Luz (2010), antes de produzir impacto menor com o semelhante O Botão de Pérola (2015) e esgotar o formato em A Cordilheira dos Sonhos (2019). Um dos perigos do cinema autoral reside em se prender ao estilo responsável por sua consagração, até perder o frescor e a coragem de assumir riscos, algo fundamental à evolução do audiovisual.

Existe apenas uma voz controlando o discurso e ditando o ritmo de todas as cenas: a de Rebecca Marder, que coloca ênfase nos episódios sem se apiedar em excesso pelos cidadãos afetados. Ela dispara uma série de reflexões pertinentes misturadas a frases de efeito (cabendo ao espectador dissociar uma da outra): “Cada povo é um conto; cada povo busca uma fábula para si”, “É uma história de força contra o império”, “A ideologia é um ogro”, “Não existe tempo moderno, apenas formas de opressão. Mesmo a virtude pode ser uma tirania”, “Adeus à democracia!”, “O silêncio é um amigo que nunca trai”, “Se o povo soubesse a verdade, você acha que ele se revoltaria?”. Curiosamente, este monólogo, próximo de uma aula magna de Panh a respeito dos abusos de direitos humanos e da nossa tolerância às guerras, solicita pouco do espectador, a quem lança conjecturas retóricas e pensamentos prontos. Relembra-se que Adolf Hitler cometeu atrocidades, que Mao Tsé-Tung oprimiu o povo chinês; que o Camboja caiu nas garras de Pol Pot. Afirma-se que as ditaduras foram e ainda são cruéis, que o povo sofre, que a contemporaneidade se aliena diante das dores alheias. Mas se alienados estão, que espectadores o filme pretende converter à causa? Afinal, o público presente a uma sessão do gênero já demonstra predisposição a escutar uma mensagem semelhante, e aquele preso às selfies dificilmente pagaria o preço do ingresso. Prega-se aos convertidos, para quem estes conceitos beiram a tautologia.

Embora a banda sonora ocupe função hierárquica superior à imagem neste projeto particular, cabe questionar aquilo que se oferece aos olhos. As imagens apelam aos bonecos inertes, sobre os quais se projetam sons de urros selvagens, gritos de dor e lemas de insurreição. O conjunto limitado de javalis e ursos cinzentos, sobre o fundo cinzento, é explorado à exaustão pelo cineasta e seu diretor de fotografia. Há pouco relevo, textura ou variação neste caso. Quanto ao uso de materiais de arquivo, a tela se divide em quatro ou seis partes, projetando nas subtelas fragmentos alternados de cadáveres, além de paisagens destruídas. A divisão provoca os sentidos inicialmente (Para onde olhar? Como as imagens vizinhas dialogam entre si?), antes de provocar certa anestesia devido à reprodução inalterada do procedimento. O longa-metragem é ocupado por maquetes singelas, cujo efeito lúdico e naïf representar com distanciamento, as atrocidades do real. Afinal, os bonecos não provocam a repulsa de verdadeiros cadáveres expostos, sendo portanto propensos a ultrapassar o choque e atingir o estágio da reflexão. No entanto, as metáforas empregadas nestes cenários se revelam simples demais, literais em excesso — uma Estátua da Liberdade enrolada em fios, personagens com colunas de chips eletrônicos, fotografando os destroços. Além disso, se a vantagem de tal procedimento se encontra no descolamento do real, porque reincidir em sequências de animais torturados e destroçados em maquinarias do setor industrial? Por que a representação do real se faz em curto-circuito?

Everything Will Be OK se encerra na forma de um apelo à conscientização de todas as mazelas do mundo, o que inclui o descaso com a natureza, o egocentrismo, a dominação ideológica por grandes empresas de tecnologia, os governos autoritários, a pausterização da História por Hollywood, etc. O título irônico aplaude a luta contra um cenário dominado por catástrofes e sofrimento. Panh, convertido na Cassandra do audiovisual contemporâneo, decide alertar a respeito de problemas tão importantes quanto conhecidos na cultura atual — é difícil pensar que as pessoas ainda não tenham derrubado regimes ditatoriais pela simples falta de conhecimento a respeito dos mesmos. Aí encontra-se a falha do documentário bem-intencionado, porém ingênuo e pouco criativo em seu dispositivo cênico: falta uma investigação de causas, origens, variações de casos entre diferentes países e continentes, junto a propostas de lutas e saídas. Quando se atém à constatação do caos, ao lembrete de que tudo está perdido, cozinhando na mesma panela Hitler, Pol Pot, bilionários da tecnologia e matadores de pintinhos em usinas, o diretor deixa de explorar especificidades fundamentais aos casos. Ele se aproxima de uma denúncia do Mal, em letra maiúscula, num percurso cada vez mais moral e menos político. Afinal, o cinema engajado precisa se engajar contra algo, a favor de algo. Panh tem se atido à descoberta e avaliação do caso. Agora, precisa passar à fase seguinte: as propostas de (re)ação simbólica, efetiva ou puramente estética face ao conflito.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *