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Sinopse

Depois de um incidente banal em sua vila, a menina de 8 anos Shula é acusada de bruxaria. Depois de um rápido julgamento, a garota é declarada culpada e levada em custódia pelo Estado, sendo exilada para um campo de bruxas no meio do deserto. No local, passa por uma cerimônia de iniciação em que aprende as regras da sua nova vida como bruxa.

Crítica

Um ônibus de turismo chega a uma região remota da África que abriga um acampamento de bruxas. Lá, dezenas de mulheres expulsas de suas comunidades, acusadas de feitiçaria, permanecem isoladas, presas por longas fitas nas costas que as impedem de voar, como explica o guia local. Enquanto a câmera realiza um travelling pelos rostos pintados das prisioneiras, que gesticulam e direcionam gritos aos turistas, a trilha sonora, com excertos de As Quatro Estações, de Vivaldi, imprime ao mesmo tempo um tom de gravidade e certa dose de ironia à cena, gerando um ruído perceptível. É nesse desarranjo intencional, dominante na sequência descrita, que Eu Não Sou Uma Bruxa, de Rungano Nyoni, opera em sua quase totalidade, expondo a personalidade e a abordagem ambiciosa da cineasta estreante que, mesmo não isenta de irregularidades, resulta pungente.

Nascida na Zâmbia, cenário do longa, Nyoni investiga essa prática primitiva e cruel, que ainda perdura em certas localidades do continente africano, na qual as mulheres acusadas de bruxaria, além de viverem no exílio, terminam escravizadas, se tornando propriedade do governo para a realização de trabalhos braçais. Essa realidade insólita é apresentada pelo olhar da jovem Shula (Maggie Mulubwa), de 8 anos, que, após um incidente banal é taxada como bruxa pelos moradores de seu vilarejo. Mesmo não negando ou admitindo a acusação, e ainda que as únicas “provas” sejam a palavra de uma moradora e os sonhos de um homem, Shula é entregue ao Sr. Banda (Henry B.J. Phiri), Ministro do Turismo e das Crenças Tradicionais do governo local, para ser levada ao mencionado acampamento, onde acaba passando por uma espécie de ritual de iniciação, podendo optar por se assumir bruxa ou fugir, se transformando em uma cabra.

Partindo de tal premissa, Nyoni debate a subjugação feminina dentro de uma sociedade patriarcal retrógrada, na qual as mulheres são levadas ao extremo da objetificação, tratadas como animais expostos em um zoológico para deleite turístico. Ou ainda, no caso de Shula, sendo explorada de outras formas pelo Ministro, seja como juíza mística em casos de roubo, para fins de extorsão do político, ou mesmo como produto sensacionalista na mídia. Essa dominação se estende para além das mulheres do acampamento, como no caso da esposa do Ministro, que ao longo da projeção revela seu passado como bruxa, e no presente ostenta uma posição intermediária graças à “respeitabilidade conquistada via casamento”, como a própria diz a Shula, mas que, na prática, também permanece em uma espécie de prisão – matrimonial – aparecendo em sua primeira cena já em uma condição submissa, dando banho no marido.

Mesmo as figuras femininas em posição de poder não são retratadas como capazes de confrontar a realidade que as cerca, se mantendo ora passivas/impotentes, como a policial do caso de Shula, ora condescendentes e aderindo às engrenagens sociopolíticas, como a rainha do território onde se localiza o acampamento. A sororidade só se manifesta de fato entre as próprias bruxas, num sentimento que a pequena Maggie Mulubwa, como Shula, carrega em seu silêncio e olhar: no encantamento ao ver a faixa da mulher do Ministro e se reconhecendo como igual ou ao celebrar o sucesso de seu primeiro julgamento ao lado das feiticeiras anciãs, externando um senso de pertencimento genuíno, ainda que por vias tortas. Também se manifesta o instinto maternal coletivo, protetor, das outras mulheres para com a garota, em especial no terceiro ato, carregado de simbolismos.

Nyoni trabalha esses elementos em Eu Não Sou Uma Bruxa mesclando a fábula de tintas ritualísticas e poéticas a um naturalismo quase documental. Novamente, como na dicotomia citada inicialmente entre imagem e música – e que se repete no jazz da sequência do ritual com a galinha na delegacia ou na música pop em uma cena-chave para o arco dramático derradeiro – há um ruído que, apesar de soar bem calculado na maior parte do tempo, exibe algumas notas excessivas destoantes, como na satírica sequência do programa de TV. Passagem que, por sinal traz uma materialização do anacronismo da sociedade retratada por Nyomi, colocando lado a lado a representação do arcaico – Shula vestida como bruxa – e a de um lampejo de evolução e empoderamento feminino – na cantora de hip hop que questiona “Já ouviu uma menina que faz rap?”.

Ainda que com tais excessos, frutos da ânsia por enfatizar um ponto de vista e expor o máximo de ideias possível, algo comum a um primeiro trabalho, Nyoni demonstra ter uma noção clara sobre o que deseja transmitir, bem como domínio técnico para fazê-lo. A diretora consegue, por exemplo, extrair o máximo do potencial visual dos signos trabalhados – o elemento das faixas por si compõe uma imagem poderosa esteticamente – sabendo também retratar a cultura local sem cair na exploração gratuita do exotismo. Tudo isso mantendo uma aura fabular, abrindo espaço para uma perspectiva mais esperançosa justamente através da possibilidade da fantasia.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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