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Sinopse

Billie Holiday é investigada pela Agência Americana de Narcóticos no auge do seu sucesso. A entidade suspeita que a cantora recebe drogas como retribuição por seu ativismo político. No entanto, o responsável pelo caso acaba trocando de lado após apaixonar-se pela artista.

Crítica

Para um filme com 130 minutos, Estados Unidos vs. Billie Holiday (2021) tem bastante pressa em fazer a narrativa avançar. A história parte do momento em que a artista está consagrada, arrastando multidões aos shows, tendo múltiplos relacionamentos abusivos, exagerando em álcool e drogas, e despertando a ira da polícia conservadora devido à canção Strange Fruit. Todos os conflitos estão postos desde os primeiros minutos, e serão exatamente os mesmos até a conclusão. Por um lado, esta estrutura permite que o impacto psicológico e político do Estado norte-americano sobre a cantora seja esmiuçado em detalhes, dentro da trama mais preocupada com a subjetividade da protagonista do que com seus álbuns e hits. Por outro lado, a decisão de situar o roteiro no olho do furacão faz com que as dores da personagem real se voltem com frequência ao espetáculo da decadência. Existe uma mistura de carinho e interesse mórbido na mulher falecida aos 44 anos, rodeada por escândalos. Em proposta semelhante àquela de Judy: Muito Além do Arco-Íris (2019), o drama extrai do fim da carreira tanto a melancolia quanto o voyeurismo.

O roteiro se concentra particularmente na pressão do Departamento de Narcóticos contra Holiday (Andra Day), usando o consumo de drogas para prendê-la e impedir que cante a música denunciando os linchamentos de negros. O conteúdo racista desta perseguição está bastante claro pela construção maniqueísta: os policiais são invariavelmente malvados, tendo a única tarefa de arruinar a cantora, do primeiro ao último minuto. Enquanto isso, esta continua à sua maneira, num misto de ingenuidade e resiliência. Mesmo assim, os diálogos tratam de explicitar o óbvio: “Ela está cantando por todos nós. Esta jovem é uma heroína”, afirma a mãe de Jimmy (Trevante Rhodes), cuja única função na trama é disparar esta frase. “Drogas e negros são o problema desta nação”, afirmam os policiais, ao passo que os personagens negros rebatem: “Os brancos sempre vão dar um jeito de dizer algo sobre nós”. O funcionário de um hotel alerta a artista de que “estão linchando pessoas como nós no sul”, e esta sugere, adiante, que “os mais duros comigo são aqueles da minha própria raça”. O diretor Lee Daniels poderia mostrar todos estes aspectos sem precisar verbalizá-los ao limite da simplificação. No entanto, o cineasta, que nunca foi particularmente sutil em suas abordagens, faz questão de enxergar na história o sintoma de uma falha estrutural mais ampla.

Os melhores aspectos do discurso provêm do retrato multifacetado e contraditório de Billie Holiday. A personagem se torna uma amiga próxima de seus amigos e equipe, porém capaz de abandoná-los quando lhe convém. Ela parece, enfim, encontrar um amor respeitoso, apenas para deixá-lo de modo abrupto. O consumo de drogas surge como algo determinante, ainda que as cenas de consumo de heroína sejam filmadas de modo discreto. Sem a preocupação de listar a sucessão de anos, datas e momentos marcantes, o roteiro privilegia uma espiral de homens, drogas e encontros com a polícia. A noção de ciclo vicioso é aplicada a todos os personagens e suas relações nocivas uns com os outros. Assim, o espectador embarca numa sucessão de experiências subjetivas (as viagens com a banda, a diversão no camarim, o sexo com empresários) ao invés da cronologia histórica. O linchamento de negros no sul dos Estados Unidos é apenas evocado, e resgatado durante viagens de drogas. O cineasta opta pelo interessante recurso de inserir rápidos flashbacks da infância de Billie durante a primeira experiência de Jimmy com heroína, ou seja, ele introduz lembranças da cantora na memória alheia. Esta constitui uma bela ousadia dentro de uma narrativa bastante convencional.

Em contrapartida, o discurso se perde nas cenas de violência mais intensa, ou de crise emocional. Uma forte briga no camarim se constrói através de uma câmera excessivamente tremida, preocupada em mostrar simultaneamente os socos, o espelho quebrado, os gritos. A rápida morte em família ganha tratamento escandaloso, assim como o plano-sequência sonhado, espécie de coreografia de choros em cômodos distintos. Esta produção se ressente da falta de contemplação – ou ainda de silêncio, de ambiguidade. O diretor sublinha suas intenções em cada cena, evitando metáforas ou poesias. Daniels opera em chave explícita, mesmo quando tenta ser discreto (vide a constrangida menção à bissexualidade da cantora). O espectador jamais é colocado na posição de plateia das inúmeras apresentações da heroína: enxergamos Holiday de um ponto de vista onisciente, à altura dos olhos, ou então em cima do palco, ao lado dela. A personagem não ganha tempo para lamentar uma morte, hesitar quanto aos rumos da carreira, sofrer uma nova desilusão amorosa. A montagem corre para oferecer, numa elipse, a chegada de outro homem, outra crise com drogas, outra canção. O show precisa continuar.

Estados Unidos vs. Billie Holiday encontra na repetição seu discurso principal, acreditando que a cantora morreu pela dificuldade em sair desta estrutura de abusos e pressão psicológica. Por isso, insere o espectador num looping semelhante. Felizmente, o ritmo ágil faz com que a extensa duração passe com rapidez, ajudada pela bela atuação de Andra Day, incorporando organicamente a voz rouca da artista, além de uma tristeza permanente no olhar. A atriz defende a dignidade desta mulher, sem julgá-la moralmente, nem exagerar em seus acessos de euforia ou depressão. Em um dos poucos personagens dotados de ambiguidade moral, Trevante Rhodes elabora com tranquilidade a mistura de carinho e vigilância sobre a cantora. Em paralelo, os produtores tomam a precaução de convidar pessoas queer e agênero para estes respectivos papéis, além de atrizes assumidamente lésbicas para a representação da homossexualidade. Outro elemento positivo se encontra na caracterização da protagonista, evitando próteses e maquiagem exagerada para transformar Andra Day numa figura mais próxima da personagem real. Nota-se o respeito pela simbologia desta mulher, e pelo episódio sangrento da Guerra Civil. No entanto, este interesse vem embalado numa abordagem que mistura as cores fortes e fumaças do cabaré, os gestos coreografados dos musicais e o teor emocional do melodrama televisivo.

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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