Crítica


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Sinopse

Campo Mirador representa o maior campo petrolífero da Venezuela, e também uma de suas cidades mais pobres. Os moradores de casas de palafitas reclamam por acesso a saúde e educação, porém não recebem apoio do governo federal. Enquanto isso, se dividem entre o apoio e a rejeição à revolução de Hugo Chávez quando chegam as eleições para a prefeitura local. Ao longo de cinco anos, o filme acompanha as transformações desta cidade de contradições.

Crítica

Era uma Vez na Venezuela (2020) se constrói através da conjunção preciosa entre a preparação e a abertura ao acaso. Por um lado, a diretora Anabel Rodríguez se desloca até o povoado de Congo Mirador na intenção de compreender a vida miserável no local de onde se extrai a maior quantidade de petróleo da Venezuela. Sem surpresas, a riqueza obtida na região não se reverte ao povo, que ocupa casebres de palafitas e se divide quanto ao apoio à revolução de Chávez. Por outro lado, ela jamais poderia imaginar todos os acontecimentos que se produzem diante das câmeras, ao longo de cinco anos, culminando no extermínio do povoado. Assim, desenvolve uma obra-testemunha, um registro “ao vivo” da crise no país, e também das divergências ideológicas se sobrepondo às necessidades pragmáticas do povo. Os personagens não precisam narrar uma realidade que a imagem possa representar por si mesma. Eles apenas seguem suas rotinas, capturadas com atenção e generosidade pela cineasta, sendo atravessados pela política do país. Quanto mais lutam entre si, mais soam vencidos por forças que ultrapassam os interesses regionais.

Parte considerável da narrativa se encontra no olhar das crianças. Ao invés de privilegiar temas explicitamente eleitorais e eleitoreiros, a diretora possui a sensibilidade de captar indiretamente o efeito deste sistema sobre a próxima geração. Descobrimos então crianças de 13 anos, grávidas ou discutindo o casamento próximo, junto de garotas pequenas, maquiadas e pouco vestidas, desfilando num concurso de beleza. Amadurece-se rápido neste local: meninos e meninas trabalham desde cedo, cuidam dos irmãos menores e se preparam para uma fuga, vista como único horizonte de emancipação. As cenas entre crianças estão repletas de espontaneidade e carinho – vide a garota dançando sobre seu balde-palco, ou os amigos provocando o senhor idoso -, no entanto, transmitem a melancolia diante de um cenário sem perspectivas de melhoria. Trata-se de uma felicidade possível: nós, espectadores distantes, sabemos que há muitas formas de vida mais confortáveis e otimistas fora desta estrutura que, para eles, constitui a única experiência possível, por enquanto pelo menos. Já os adultos transmitem uma mistura de amargor, militantismo e delírio coletivo. Entre brigas de chavistas contra não-chavistas, entre uma casa-altar para Chávez e uma escola cuidada com carinho pela professora, descobrimos espaços de afeto (local) que também constituem espaços de descaso (nacional).

Para o espectador, a experiência se enriquece graças à infinidade de contradições socioeconômicas no interior de cada cena. Rodríguez se posiciona ao mesmo tempo junto às forças revolucionárias e contrarrevolucionárias, tornando-se confidente e observadora de ambos. O filme estabelece uma cumplicidade ímpar com os habitantes, sendo acolhida por Congo Mirador sem que os comportamentos soem transformados pela presença da câmera. A compra de votos, praticada por ambos os lados das eleições locais, é retratada com franqueza ímpar pelos candidatos – e quando não consegue registrar algum suborno, a cineasta faz questão de demonstrar esta dificuldade ao espectador. O documentário jamais se esconde por trás de uma “verdade”, nem da ilusão da “vida real”: somos constantemente lembrados de que este é um filme, dotado de um olhar externo àquelas pessoas. As meninas exibem os pratos que estão cozinhando à câmera, fazem comentários diretamente à imagem, enquanto Rodríguez intervém com frequência. A subjetividade assumida constitui uma das boas precauções do filme que evita a falsa imparcialidade, embora respeite pontos de vista distintos.

Em consequência, Era uma Vez na Venezuela possui o mérito de enxergar a política no dia a dia, sem precisar resumi-la aos processos de votação e negociações com governadores. As refeições, a dificuldade de pescar ou dar aulas, a falta de equipamentos de drenagem e de telefones celulares resgatam a noção de que a política vai muito além da organização partidária-institucional, inscrevendo-se nas vivências desde a primeira infância. Em paralelo, este olhar desconstrói a noção de uma atividade inerentemente “suja” ou corrupta: embora esteja repleta de coronéis e demais abusadores de poder, a prática política se faz necessária, constituindo a única maneira de transformar efetivamente a vida de Congo Mirador. Tanto Tamara, candidata inscrita no poder há anos, quanto a professora da escola, ativista solitária e sem apoio, militam à sua maneira pelos interesses que estimam serem os melhores para a cidade. O filme traduz estas interações em dezenas de sequências poéticas e silenciosas pelos barcos, posicionando-se no meio das crianças quando brincam na água, entre os adultos quando comemoram uma festa religiosa, e dentro do círculo de moradores durante uma reunião eleitoral. O discurso assume a posição de um morador atento, admirando a todos em proximidade, de igual para igual.

Dois pequenos fatores prejudicam o resultado. O primeiro deles diz respeito às cores saturadíssimas. Ainda que este pareça um elemento menor, ele soa como única intrusão artificial no cenário realista: a pós-produção intensifica tanto as cores que os brancos nunca são brancos por completo, e as cores vivas das roupas e casas se convertem em pinturas. Por que ornamentar este cenário de belezas humanas evidentes por si próprias? Segundo, nota-se a dificuldade na hora de se concluir. Três ou quatro sequências impressionantes se apresentam como possíveis finais, antes de a narrativa passar ao dia seguinte. Rumo ao término, os letreiros avançam meses e anos, e se apressam para mostrar novas interações entre moradores, incluindo uma tragicômica reunião com o governador. Ressalvas à parte, o filme trabalha de maneira eficaz suas metáforas simples (os raios, os peixes mortos pós-eleições, o barco encalhado de nome “Venezuela”), encadeando-se em ritmo leve e ostentando uma atitude respeitosa com os moradores. Aos olhos estrangeiros, a política venezuelana tem se convertido em caricatura, sobretudo dentro dos fetiches da extrema-direita brasileira. Este projeto enxerga as subjetividades por trás de revoluções, e as histórias de vida para além das constatações de riqueza ou pobreza, de sucesso ou fracasso eleitoral.

Filme visto no 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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