Crítica


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Sinopse

Giovanni Falcone e Paolo Borsellino foram dois juízes conhecidos no sul da Itália por combateram o Cosa Nostra, um dos maiores núcleos mafiosos do país. Ambos foram executados por seus opositores. Décadas após o crime, o diretor visita a região onde os fatos aconteceram para descobrir a imagem popular de Falcone e Borsellino com os moradores. Enquanto isso, acompanha a trajetória de um organizador de eventos, encarregado da tarefa ingrata de elaborar uma festa popular em homenagem aos juízes, em pleno berço da máfia.

Crítica

Quando se diz que o documentário não constitui um gênero, e sim uma linguagem, a proposição soa estranha para alguns ouvintes. Ora, existem documentários dramáticos, policiais, de suspense, terror, comédia. Era uma Vez a Máfia (2019) representa um exemplo de documentário cômico. O diretor Franco Maresco parte de uma tragédia – o assassinato dos juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino – para transformá-la em farsa. Ao invés de resgatar os fatos que levaram ao extermínio destes combatentes da criminalidade no sul da Itália, ele mergulha na memória contemporânea do evento. Que lembranças os adolescentes da região guardam da dupla? De que maneira se discute o crime no berço do Cosa Nostra? Esta premissa poderia dar origem a um documentário sociocultural (em estilo Selfie, 2019), mas o cineasta prefere explicitar as contradições e o funcionamento grotesco de parte da sociedade italiana. O ponto de vista é cáustico, repleto de ironia tanto com os entrevistados quanto com o espectador (“Vocês que nos acompanharam até agora por puro masoquismo”, nas palavras de Maresco). Embora permaneça atrás das câmeras, o criador sustenta a posição de personagem principal: ele efetua a narração, comenta os depoimentos alheios, faz piadas, provocações. O cineasta fala muito mais do que qualquer entrevistado.

A liberdade de expor as pessoas e a si próprio, ao limite do patético, traz vantagens e desvantagens. Por um lado, permite uma espontaneidade rara para filme a respeito de um tema tabu. A narrativa se inicia com Letizia Battaglia, famosa fotógrafa antimáfia, reclamando por não ter sido escalada num projeto onde interpretaria uma “puta velha” – seu sonho, segundo a personagem. O autor adota o estilo de um repórter agressivo, próximo dos programas de televisão paródicos (como Billy on the Street). Diante de adolescentes que minimizam a importância de Falcone e Borsellino, pergunta se perderam a piedade com estes “santos que se sacrificaram por nós”. As reações são incrédulas, de revolta ou desprezo. Adiante, explica suas decisões de câmera e roteiro, comenta a aparência física de Letizia, e confessa a Ciccio Mira, organizador de eventos: “Você sabe que esse espetáculo é péssimo”? Trata-se menos de questionamentos propriamente ditos do que afrontamentos. O diretor investe na política do confronto de natureza retórica: pouco importa o conteúdo das respostas, pois o valor procurado se encontra na audácia das perguntas. A montagem faz questão de exibir erros, imprevistos, ameaças de passantes contra o diretor. O conteúdo é divertido pois improvável, preferindo o caos à ordem.

Por outro lado, esta diversão anárquica, propensa a excessos, pode despertar dúvidas quanto aos limites éticos. O roteiro inclui a insinuação de um ex-mafioso, já idoso, de que “ainda dá no couro” – fato repetido por Maresco –; efetua conversas com pessoas sob sigilo, vestindo máscaras infantis de animais; introduz uma suposta câmera escondida capaz de mudar de enquadramento (seria uma ficção encenada?), e jamais extrai mais do que poucas palavras de seus colaboradores. O operador de câmera flagra uma ameaça de morte, no entanto vítima e algoz, ambos à distância, possuem qualidade perfeita de som, como se estivessem microfonados previamente. O filme constrange seus personagens, ridicularizando seus dotes vocais, sua inteligência limitada, a submissão aos chefes, as gafes durante um discurso. O cineasta solicita aos moradores e trabalhadores do sul da Itália que digam, abertamente, “Não à máfia!”, frase que se negam a repetir, seja por medo ou respeito a esta instituição. Diante das recusas, ele insiste uma, duas, cinco, dez, quinze vezes. “Quando você vai dizer ‘não à máfia’”? “Por que não disse ‘não à máfia’”? Há um misto de coragem, petulância e ingenuidade neste gesto. A direção evidencia o incômodo dos personagens, testando a fronteira da cordialidade diante das câmeras. Maresco parece buscar o ponto em que os personagens explodirão – existe um desejo assumido de despertar a violência simbólica para representar a violência real.

Ao menos, neste vale-tudo do cinema, restam passagens memoráveis, capazes de refletir, além de provocar. O documentário promove um interessante estudo acerta do status da ilegalidade, explicando como o romantismo de antigamente se converteu em cinismo, apatia e conformismo no século XXI. A narrativa cita Berlusconi, menciona ministros, acena a um possível gesto de corrupção do atual presidente em favor de criminosos. As provas apresentadas são insuficientes, porém Era uma Vez a Máfia se contenta com a perda de credibilidade – ele está mais preocupado em escancarar as falhas do sistema do que compreender suas origens, ou possibilidades de superação. Assim, elabora um processo de urgência onde tudo ocorre ao vivo, em frente a um diretor que aparenta orquestrar, ou pelo menos estimular, os conflitos para as necessidades do filme. A relação conturbada com Ciccio Mira (retratado sempre em preto e branco, em oposição aos demais personagens) revela um desejo de intimidação semelhante aos procedimentos truculentos dos próprios homens que critica. De certo modo, se os gângsteres ignoram as regras, o cineasta estima que também não precisaria respeitá-las. A noção de que fins justificam os meios é extrapolada a favor da direção, em chave autorreferente e autoparódica. Esta é uma produção metalinguística, questionando o ato de fazer cinema e o poder (exagerado ou deturpado) dos autores.

Por fim, o projeto aposta numa forma de política-espetáculo, onde o absurdo da vida se traduz em absurdo estético. Em consequência, são permitidas imagens tremidas, fora de foco, com captação amadora de som e luz. Maresco acredita na necessidade de encontrar uma forma à altura de seu conteúdo: de nada adiantaria efetuar um retrato elegante e clássico-narrativo para um sistema ilegal, a corrupção generalizada e a memória coletiva falha. Apesar de explicações simples no início, ele se revela um cronista astuto ao longo desta experiência, atacando eufemismos (quando se diz que Falcone e Borsellino “partiram”, ao invés de “foram assassinados”), sublinhando contradições de pensamento e conveniências políticas. Ciccio Mira, que organiza eventos tanto para mafiosos quanto para seus combatentes, representa a figura máxima desta malandragem à italiana, tentando fugir às perguntas pela tangente, empregando meias-palavras, e finalmente respondendo “No comments”, em inglês. Em certa medida, este constitui o objetivo do criador: encurralar os indivíduos coniventes com a máfia, testando a sustentação de seu discurso. Para o bem ou para o mal, o resultado explicita a comunicação agressiva dos tempos da política da lacração, mais acusativa do que propositiva.

Filme visto online no 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em junho de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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