Crítica


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Sinopse

Comunidades também são construídas a partir da invenção diária do que lhes é comum. A ocupação urbana Eliana Silva, em Belo Horizonte, tem suas próprias regras às vésperas das eleições de 2018.

Crítica

A câmera se aproxima da ocupação Eliana Silva com cuidado, como se pedisse licença para entrar. Um grupo de moradores discute os problemas dos correios que não chegam àquelas ruas, enquanto os diretores os filmam a muitos metros de distância. Não há qualquer intenção de espiar os participantes da reunião, pelo contrário: o olhar da direção está sempre posicionado no meio das ruas, diante de várias pessoas e comércios. Mesmo assim, os diretores Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica chegam aos poucos e escutam em silêncio, adotando a postura de quem tem algo a aprender com aqueles cidadãos, ao invés de algo a ensinar. A maneira como o dispositivo cinematográfico adentra os espaços se mostra coerente com o posicionamento político dos realizadores: a imagem se abre àquela realidade sem controlar o que se passa à sua frente. Os cineastas estão dispostos a abraçar quaisquer interações ou falas, sem embelezar nem controlar a dinâmica para as imagens. É o cinema que se adequa à ocupação, e não o contrário – ninguém dá a impressão de efetuar gestos ou repetir falas para a câmera. Ao mesmo tempo, os diretores não chegam munidos de teses prévias.

A escolha estética mais determinante para o documentário se encontra nos planos fixos. A quase totalidade da narrativa é criada a partir de longas reuniões entre moradores, entrevistas com lideranças pelo direito à moradia ou colegas interagindo num bar. Mesmo que a imagem se aproxime, aos poucos, ela evita entrar nos comércios ou explorar as casas para além do único plano escolhido. Não há um close-up sequer no rosto dos moradores. A escolha do enquadramento fixo poderia resultar num enfraquecimento da dinâmica caso as imagens não fossem tão bem pensadas pelos autores e montadas por Gabriel Martins. Ora, os planos abertos tratam de inserir as pessoas dentro de espaços muito específicos: as casas modestas, as ruas não pavimentadas, os salões de encontros para discutir política. O filme representa muito bem o bairro e o senso de comunidade sem precisar passear pelas ruas, explorar diversos cômodos, nem seguir pessoas. Cada imagem é estrategicamente concebida em termos das interações que pode provocar. Assim, múltiplas ações ocorrem dentro de cada quadro – vide a bela cena em que uma moradora, que se define como “porra louca”, recebe a visita de um filho durante a entrevista, e depois recebe um segundo filho, com a nora e o neto. As interações se tornam dinâmicas não pela decupagem, mas pela espontaneidade permitida em cada cena (o churrasco entre amigos, as meninas pintando os cabelos e as unhas).

A convivência dentro da Eliana Silva ocorre durante um período muito específico da história brasileira: os meses que precederam e sucederam à eleição presidencial de 2018. Os moradores se dividem entre apoiar o direitista que favorece os ricos (“Eu também quero ser rica!”, justifica uma mulher), e condenar o político visivelmente contrário a ocupações populares, ainda que tenham se decepcionado com a omissão do PT no poder. Sem se tornar panfletário, o projeto capta as conversas mais ou menos espontâneas a respeito do posicionamento ideal a adotar tanto nas urnas quanto depois da eleição. Nos bares, por exemplo, as falas soam despojadas e sinceras, enquanto nas reuniões entre lideranças, adota-se um teor eloquente, e também mais professoral (razão pela qual ninguém retruca, completa ou interage a partir dos monólogos de dois líderes do movimento). Teria sido ainda mais interessante acompanhar as eleições de perto, ou compreender como o resultado das urnas foi imediatamente recebido pelos personagens. Indianara (2019) e Sementes: Mulheres Pretas no Poder (2020) dedicaram capítulos importantes à ressaca das lideranças populares quando Jair Bolsonaro foi declarado vencedor. No filme mineiro, entretanto, avisa-se da vitória discretamente, sem estabelecer qualquer ruptura notável (de ordem prática ou simbólica) na chegada do novo presidente.

Por mais que o projeto apresente uma estética coesa, com uso muito instigante do som (as falas estão sempre bastante próximas, mesmo que os corpos estejam distantes da câmera), Entre Nós Talvez Estejam Multidões (2020) apresenta algumas deficiências de produção. Quando os personagens discutem pelas ruas se Bolsonaro acredita em Deus, a câmera se torna inesperadamente tremida, com problemas de iluminação e cor (modificadas em pós-produção?). A cena diante da lanchonete também se inicia de modo fixo, até que a instabilidade da imagem passa a chamar mais atenção ao dispositivo do que à fascinante conversa dos clientes. Em paralelo, na sequência do bar, ao lado da mesa de sinuca, um funk extradiegético abafa a fala de um personagem, num recurso comum para a transição entre cenas. No entanto, a música se interrompe por si própria e voltamos a escutar o que morador dizia. Por que este trecho da fala foi ocultado? Algumas cenas excessivamente longas, sobretudo nas duas reuniões de lideranças, prejudicam o ritmo geral, por privilegiarem a potência das ideias. Infelizmente, não se retrata qualquer debate com outras pessoas ao longo das reuniões (nem se espera até que ocorra organicamente). Por mais fortes que sejam as falas dos líderes, elas se tornam acessórios neste contexto, como se a direção os deixasse palestrar pelo tempo que quisessem, visto que representam o ponto de vista da direção.

Mesmo assim, o filme inclui belos momentos de respiro e de poesia. Há dançarinos, cantores e músicos para intercalar a arte com a política – ou sublinhar a coexistência intrínseca entre ambos. Com o suporte de um palco improvisado, bateristas, cantores e grupos de passinho se apresentam às câmeras. O recurso interessa tanto pela luz, discreta, porém suficiente para destacar o espaço de apresentação da vida cotidiana, quanto pela não-interferência. Apesar de o palco estar disponível ao olhar da câmera, os moradores aparentam total liberdade para efetuar os gestos e performances que quiserem. As canções dentro das casas, em especial a bela interpretação de “Hallelujah” sobre o som da chuva, combinam espaços de luta e espaços de afeto. Os relacionamentos entre amigos, os depoimentos sobre homoafetividades e o carinho familiar (a mãe sorrindo, orgulhosa do filho diante das câmeras) despertam uma calorosa sensação de comunidade onde todos trabalham juntos, cuidam uns dos outros, e se movimentam por uma causa comum, ainda que haja inevitáveis discordâncias internas. O projeto carrega o ideal de uma esquerda vinculada não a um ou outro partido, e sim ao sentimento de luta pelo fim de desigualdades, e por mais diversidade social. Brito e Bemfica deixam a terna sensação de realizarem o filme com os moradores, ao invés de sobre eles. A solidariedade com a luta das ocupações, por meio do tratamento igualitário entre diretor e personagens, impregna cada cena.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
7
Francisco Carbone
6
MÉDIA
6.5

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